Já escrevi outras vezes sobre isso. É que faz falta, e o espírito assim exige. Nesses tempos de barbaridades frequentes, ceticismo geral e desesperança crescente, de alguma tristeza discreta e represada nos muros cada vez mais altos da individualidade, dos dias que passam sem muito alento, nesses tempos de distanciamento e recolhimento, uma palavra esquecida, tão familiar que era nos Anos 60, 70, 80, pode colaborar. Falava-se muito em utopia naqueles anos, uma palavra que enchia corações. Nos Anos 90, porém, utopia começou a naufragar, não por acaso, quando passou a emergir a cultura do resultado. Utopia e resultado foram radicalmente contrapostos. Então, utopia passou a ser desacreditada sistematicamente, sob acusação de não ter serventia para o propósito de obter resultados, e restou completamente adormecida, subestimada, esquecida ou simplesmente ignorada e desconhecida. Notem que, não por acaso, os tempos de agora são de desesperança.
De certa forma, utopia está intimamente associada a sonhos. Quem diria, em outras épocas, era avassalador o bordão “sonhos, acredite neles”, com um componente coletivo essencial e transformador da realidade. “Sonho que se sonha junto”, se dizia, era embrião de uma nova realidade. Os tempos vão passando, e os sonhos são agora meramente individuais, uma conquista, a casa própria, um emprego, uma sobrevivência. A isso foi se restringindo a ideia de sonhos.
Pois nesse ambiente de descrédito e desesperança, utopia é utilíssima. Porque utopia exige acreditar que uma nova realidade é possível e sugere, portanto, otimismo. Precisa ser forjada no coletivo, e sugere parceria na caminhada. A música popular brasileira era repleta de utopias. Recolho uma dessas canções, Coração Civil, de Milton Nascimento e Fernando Brant, em que utopia era o tema central, que deixa transparecer evidente o ambiente de esperança, astral otimista, parceria e celebração da época, bem diferente do que se vê hoje: “Quero a utopia, quero tudo e mais / Quero a felicidade dos olhos de um pai / Quero a alegria muita gente feliz / Quero que a justiça reine em me país / Quero a liberdade, quero o vinho e o pão / Quero ser amizade, quero amor, prazer / Quero nossa cidade sempre ensolarada / Os meninos e o povo no poder eu quer ver / São José da Costa Rica, coração civil / Me inspire no meu sonho de amor Brasil / Se o poeta é o que sonha o que vai ser real / Bom sonhar coisas boas que o homem faz / E esperar pelos frutos no quintal.” Vale sublinhar: “Quero que a justiça reine em meu país.”
Utopia é útil para resultados generosos. Se surgisse nos dias de hoje, Coração Civil não tocaria em rádio. Eis um bom retrato de nossos dias. Explica bastante por que utopias saíram de cena.
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