Há uma cena urbana em Caxias com todo potencial para produzir desconforto em quem passa. Nem sempre isso acontece, pois em Caxias somos estimulados a dedicar especial devoção à pressa e à mobilidade. Movimentar-se rápido é aquilo que mais interessa. Ou então passamos distraídos, com o senso de observação ainda não suficientemente treinado para descobrir detalhes e cenas relevantes disponíveis nas ruas da cidade. Falo daquela mãe índia com dois pequenos indiozinhos que a acompanham em endereços rotativos no Centro.
Trata-se de uma mãe sentada na calçada, um indiozinho que ainda não tem dois anos, uma indiazinha de seis ou sete. Um cartaz escrito em papelão é estrategicamente exposto para indicar as necessidades da pequena família. E ainda que a cena possa vir carregada – por mera suposição – de algum matiz interesseiro de quem vislumbrou naquela composição urbana algum retorno possível pela via da solidariedade, a cena está ali, objetiva, capturada de passagem pelos nossos olhos e por nosso espírito. Deveria produzir algum desconforto pela condição a que ficam expostos aquela mãe e os dois indiozinhos, e pela reflexão que deveria despertar, e certamente desperta em tantas mentes. Para logo nos concentrarmos outra vez nas urgências do cotidiano.
Da última vez que os vi, foi às portas do Banrisul, na Sinimbu. Para além da condição dura da cena urbana, com os veículos e as pessoas a passar, velozes e barulhentos, como cenário de fundo, brota a conjectura sobre o que se passa nos pensamentos de cada um. O indiozinho, ainda bem pequeno, estava com fome, e buscava o seio oferecido na calçada. As reflexões da mãe, é possível especular, estão inevitavelmente limitadas e conformadas pela dura realidade. Mas a filha índia é um capítulo especial. Já é capaz de articular algum pensamento ou reflexão sobre a condição em que vive, e deve esboçar questionamentos sobre as impossibilidades que a cercam, que começa a perceber. Por exemplo, ter de passar o dia sentada na calçada, sem nada para fazer a não ser alguma forma de distração solitária e inventiva. Da última vez, ela segurava um carro de brinquedo, não exatamente pequeno e com algum recurso lúdico, provavelmente comprado na loja ao lado, mas que deve ter ganho como forma de solidariedade. A indiazinha pegava o carro e o fazia girar sobre as rodas de trás, com leve impulso, e o carrinho girava indefinidamente, como nesses recursos de hipnose. Imóvel, ela ficava ali a girar o carrinho, e seu olhar e seu pensamento seguiam no embalo. Até onde vão, só ela sabe. Tomara quem voem longe.
As impossibilidades que brotam da desigualdade de condições são desconcertantes. Ou deveriam ser.