O período de quase quatro anos em que James Bellini, 62 anos, terá atuado como CEO da Marcopolo talvez se caracterize por ter abrangido a maior tempestade enfrentada pela companhia, em uma crise sem precedentes no setor de transporte coletivo em função da pandemia.
A avaliação é do próprio comandante, que deixará o cargo em março, conforme processo sucessório já anunciado. Mas a sua chegada, em 2019, não foi planejada como está sendo agora sua saída. Ela ocorreu em função da morte do fundador da fabricante de ônibus, Paulo Bellini, um ano antes de assumir e, principalmente, porque o então CEO, Francisco Gomes Neto, foi convidado a assumir a Embraer.
A experiência de velejador de James, de saber ajustar as velas conforme o vento, e a coragem de quem já deu a volta ao mundo em uma embarcação, o ajudaram a fazer com que a Marcopolo seguisse no rumo mesmo enfrentando forte tormenta.
Mais velho de três irmãos, James herdou do pai a vocação de empreender. Em 1949, Paulo Bellini fundou uma fábrica de carrocerias de ônibus, criando de forma quase que artesanal o primeiro modelo chamado Nicola. Décadas depois, o filho criava uma empresa de exportações com a mesma idade que o pai tinha quando criou a sua, ambos com 22 anos. Mais tarde, James também montou um estaleiro para fabricar veleiros, negócio que manteve até poucos anos antes de assumir o posto de comando na Marcopolo.
O gosto por viagens sempre foi compartilhado por pai e filho, em terra ou mar. Aliás, ambos sempre tiveram uma forte relação com a água. A diferença é que o primeiro gostava mais de pescar e, o segundo, estava mais interessado no que poderia encontrar acima da superfície. Mas ambos sempre em busca de ir além do horizonte, transportando pessoas em seus ônibus, mas também suas ideias de vanguarda.
James Bellini é um dos painelistas do Encontro de Gigantes que ocorrerá nesta terça-feira (18) de manhã na CIC em Caxias e vai compartilhar um pouco de sua visão sobre o futuro. A seguir, confira mais sobre sua biografia:
Qual a origem do nome James, já que ele não é tão comum na região?
O pai e a mãe sempre me contavam que o meu nome veio de um ator da época que era muito conhecido, James Dean. Mas a pronúncia foi abrasileirada para Jâmes. Como é um nome muito comum entre os americanos, tenho muitos amigos que me chamam de Djeimes.
Ouço muitos filhos de empresários que lembram da infância brincando dentro das indústrias, quais são as tuas principais lembranças desta época?
Eu tinha muita liberdade para brincar, porque o pai tinha uma casa com um terreno enorme. Então a gente jogava bola, subia em árvores, aquilo tudo que hoje em dia quase não tem mais. Não tinha tablet, celular, computador... Brincadeira mesmo era na rua. Eu jogava bola e tenho uma memória muito boa disso da minha infância.
Como é ser o irmão mais velho, mesmo que seja apenas um ano de diferença em relação ao Mauro Bellini (atual presidente do Conselho de Administração da Marcopolo)?
A gente sempre se deu muito bem e estávamos sempre juntos. Jogávamos bola com amigos da mesma turma. Eu ficava nas posições mais à frente, centroavante ou ponta direita. O Mauro era mais no meio-campo. Mas era só jogar bola com os amigos mesmo, nada de profissional.
Onde começou a tua formação escolar?
Primeiro eu estudei no Presidente Vargas. Depois estudei no Carmo até o segundo ano do Científico da época. O terceiro eu fui fazer em Porto Alegre, no Colégio Marista Champagnat, porque eu sempre tive ideia de entrar na PUC na faculdade. E acabei convencendo o pai de que ajudaria muito ir antes para a Capital para me preparar para o vestibular. Mas, na verdade mesmo, eu queria morar em Porto Alegre porque já tinha muitos amigos lá.
Como foi o período na Capital?
A minha época de faculdade foi curiosa, porque, eu um primeiro momento, eu queria fazer Engenharia. Optei pela Elétrica porque eu gostava muito da área de Ciências Exatas. Só que chegou lá, na metade do curso, e eu vi que aquilo não era para mim. Aí eu fui fazer vestibular na UFRGS para Administração de Empresas. Estudei muito e, quando eu já tinha passado, vim para Caxias e contei paro o pai que estava largando a Engenharia. Ele disse: "de jeito nenhum tu vais fazer isso, porque eu não vou te pagar outra faculdade enquanto não terminar esta". E foi aí que eu disse: "não vai precisar pagar, ela é pública". Expliquei que estava perdendo tempo em algo que já tinha certeza que não me serviria e o convenci que a administração seria melhor.
Ele tentou sugerir que fizesse as duas faculdades juntas?
Ele tentou, mas aí eu tive de ser um pouco mais convincente, e fui firme na minha posição. Até porque eu também já estava trabalhando naquela época. Eu comecei a minha vida profissional em Novo Hamburgo, em uma empresa de exportação de calçados, como operador de telex, que era muito tecnológico para a época. Aí eu fui crescendo nessa companhia até que chegou um momento em que eu decidi sair e colocar a minha própria empresa de exportação. O Mauro era meu sócio.
Esta primeira experiência de empreendedor foi com que idade e como foi importante que ocorresse antes de entrar na Marcopolo?
Foi com 22 anos mais ou menos. Foi uma época que eu aprendi muito. Nessa mesma época, lembro que a Marcopolo estava enfrentando uma crise, foi na virada dos modelos de ônibus Geração 3 para a 4. A anterior tinha muitos problemas no mercado. E aí o que salvou a empresa na época foi a Geração 4 , que foi um produto revolucionário para a época. A companhia deslanchou a partir daí e foi assumindo liderança de mercado, que nunca mais perdeu. Daí para frente tiveram várias crises, mas essa tinha sido uma crise de produto, não era nenhuma crise de mercado. Era interna. A mais recente, a da pandemia, foi a situação mais difícil que a gente enfrentou na história da empresa. Mas na época daquela primeira crise eu não estava ainda na Marcopolo. Em um primeiro momento, meu pai não fazia questão de que os filhos estivessem na empresa. Ele achava que a gente primeiro precisava ter uma formação, ter outras experiências fora, para depois começar na empresa. Quando eu falei para ele que eu queria colocar essa minha empresa de exportação, ele me ajudou. E foi uma experiência que me fez começar a entender o mundo dos negócios.
E quanto tempo ficou atuando no ramo de exportações de calçados?
Mais ou menos uns oito anos. Aí veio o Mercosul e a gente começou a pensar que, já que nós tínhamos uma companhia de exportação, e o ramo de sapatos não estava legal porque em seguida veio aquela crise que quebrou muitas empresas na década de 1990, podíamos aproveitar para pensar algo novo. Eu tinha um amigo argentino que, na época, tinha também uma empresa pequena do setor de de carteiras de couro. Conversamos e pensamos: quem sabe, tu procuras negócios na Argentina onde a gente possa entrar aqui do Brasil, e eu procuro aqui para levar para vocês? Começamos trabalhando com sifões, garrafas que injetam gás na água, doce de leite e uma série de outro produtos. Até que um dia, conversando com o pai em casa, eu perguntei para ele quem era a representação da Marcopolo na Argentina. Ele disse que não havia, porque até então era um país sempre muito fechado. Aí eu perguntei se tinha alguma possibilidade da minha empresa fazer uma experiência. Ele mandou eu falar com o gerente de exportações e fazer uma proposta. Foi o seu Valter (Gomes Pinto, também um dos sócios da Marcopolo) quem me ligou, era quase perto do Natal, e disse assim: "saiu a fumaça branca". Seria feita uma experiência de um ano e, se desse tudo certo, seria renovado o contrato como se fazia com todos os representantes. Aí eu fui para Buenos Aires, montamos todo o negócio e foi assim que começou a minha primeira experiência na Marcopolo, como representante na Argentina.
E durou por quanto tempo o contrato?
De um ano, viraram quatro anos de contrato. Hoje, a Argentina está entre os três principais mercados de exportação da Marcopolo. Abrimos o mercado lá em 1991. Já no primeiro ano, vendemos 74 unidades. E fazendo uma ginástica, porque era um país muito fechado. A marca era conhecida, porque passavam muitos ônibus por lá, já que vendíamos para Uruguai e Chile, países vizinhos. Mas a indústria da Argentina era forte e tinha um padrão diferente. Naquela época, aqui no Brasil não se tinha noção do que que era o Double Decker (ônibus de dois andares).O pessoal daqui olhava esses ônibus e achava que ele ia quebrar. No primeiro ano, vendemos só os nossos modelos Paradisos normais, mas, quando eu comecei a conhecer o mercado lá, percebi que não tinha como atender a Argentina sem ter os modelos de dois andares. Então, peguei o nosso engenheiro na época, que era o Camilo Policastro, e levei ele para a Argentina comigo, porque tínhamos um mercado gigantesco. A gente fazia ônibus de 13 metros de comprimento e eles faziam de 14 e de dois andares. E o Camilo foi para lá e se convenceu que nós éramos capazes de fazer, e comprou a briga comigo. Então, a partir daí, nós começamos a desenvolver o primeiro modelo. Isso foi em 1994.
E hoje, quanto o Double Decker representa no segmento de rodoviários pesados do total fabricado pela companhia?
É quase 80%. E se pegar somente o setor de turismo, é praticamente 100%. Só que esse foi um mercado que praticamente desapareceu na pandemia e que agora está retomando.
Como foi o retorno para o Brasil?
Houve uma reestruturação interna na Marcopolo e abriu um vaga de gerente de exportação. Não tinha ninguém de dentro com o perfil adequado. A diretoria da época, por conta do trabalho que eu tinha feito na Argentina, me convidou para assumir. Sentia que era o momento de eu começar a entrar mais no negócio, porque algum dia eu teria que estar aqui de qualquer maneira.
Sempre foi uma vontade tua ou uma questão mais familiar?
Minha vontade e, depois que eu tive essa experiência como representante, eu entrei a fundo e gostei do negócio. Aí eu comecei a ter paixão por aquilo. Fiquei como gerente de exportações por cerca de dois anos e, em seguida, fui promovido. Fiquei até 2006 como diretor de mercado externo. Isso me deu muita bagagem, porque, obviamente, eu tinha contato com todo o mundo, circulava e conhecia todas as áreas, lidava com programação, com fornecedores...
Lembro deste período da abertura de muitos mercados na África, mas, além desses, quais foram os que mais te marcaram?
Era bem nessa época que eu estava como diretor. Mas também abri o mercado em Cuba que foi o mais difícil, sem dúvida. Imagina chegar lá e vender ônibus para o governo de Fidel Castro? Porque lá é tudo do governo. Mas eles tinham um mercado muito promissor de turismo e nós estávamos desbravando novos mercados, e em fase de crescimento das exportações. Quando eu comecei a exportação aqui, a gente exportava cerca de 25 milhões de dólares. Quando eu saí, nós estávamos com cerca de 150 milhões de dólares. Hoje é mais de um R$ 1,2 bilhão.
E por que decidiu sair da Marcopolo em 2006?
Eu tomei uma decisão bem radical. Tinham questões internas me incomodando, culturais, muito ligadas à falta de meritocracia. Eu briguei muito para mudar isso, mas eu não tinha força suficiente para virar a chave na época. Eu já velejava como hobby e eu decidi fazer uma experiência profissional no ramo náutico, criando a Wind Náutica. Comecei a desenvolver um veleiro com 43 pés junto com o meu sócio argentino, que também velejava.
E como um "gringo" da Serra, onde não tem mar, foi virar um velejador?
Aprendi com esse meu amigo da Argentina no Rio da Prata. Depois fizemos uma viagem para o Caribe e, na volta, encomendei um barco. Em seguida, fomos de Porto Alegre até o Rio de Janeiro, velejando com meu barco novo.
Mas precisa ser corajoso para isso...
Era o meu desafio naquele momento. E aí foi preciso ter uma garra terrível contra o vento, era um barco cheio de problema e, quando chegou lá no final, pensei: com tudo que nós apanhamos nesta viagem, será que é isso que eu quero mesmo? Fui dormir, acordei no dia seguinte, e tinha a resposta: é isso que eu quero mesmo. A partir daí, comecei a fazer cursos teóricos para habilitação e cheguei ao grau máximo de capitão. Aí eu decidi colocar o estaleiro com esse meu sócio e começamos produzindo lá na Argentina. Depois fui para São José dos Pinhais (PR), por causa da mão de obra. Foi em 2012 que eu tomei a decisão de dar a volta ao mundo velejando. Era uma coisa que eu queria fazer antes de morrer, o meu sonho era esse. Eu mesmo resolvi fazer meu barco. Convidei um amigo, que trabalhava comigo lá no estaleiro, e construímos o barco, que ficou pronto em junho de 2014 e ele viajou junto. Levamos ele para o Guarujá e colocamos na água. Fizemos toda a costa brasileira até Fernando de Noronha, passamos pelo Caribe, cruzamos o canal do Panamá e todo o Pacífico. Paramos em alguns países como Austrália, passamos pela Indonésia, Malásia, Singapura, Tailândia, cruzamos todo o Mediterrâneo e, em novembro de 2016, a gente cruzou o Atlântico. Foram dois anos e meio viajando.
Que aprendizados sobre planejamento e mudanças repentinas de rumo essa longa jornada te trouxe?
Planejamento é mandatório, porque tu dependes muito de condições externas ou adversas de tempo. Em determinadas épocas e em lugares, caso do Caribe, de maio a novembro, tu não podes passar porque pode tem risco de furacão. Às vezes não é muito fácil, mas isso foi sempre o que me motivou e foi por isso que eu consegui completar a volta.
Como foi regressar ao Brasil após morar tanto tempo em um barco?
Nem imaginava tudo que iria acontecer, porque meu pai morreu poucos meses depois de eu voltar. Quando ele não estava mais aí, comecei a me preocupar, porque eu nunca imaginei a Marcopolo sem alguém da família olhando muito de perto. Tive de tomar uma decisão complexa de entrar de cabeça. Entrei no Conselho de Administração, mas, logo em seguida, o Francisco (Gomes Neto, CEO da época), me avisou que iria para a Embraer. Eu perguntei para ele: tá, mas em quanto tempo? Seis, sete meses? E ele respondeu: em três semanas. Aí não tinha jeito, né? Aí que veio a história de eu assumir interinamente para preparar alguém por um tempo, porque tínhamos potencial de pessoas internas para assumir, mas ninguém estava preparada ainda para isso. Nem eu estava, mas pelo menos eu já tinha uma visão mais ampla. Nós entendíamos que tínhamos essa pessoa, era só uma questão de amadurecer.
Dentro da história da Marcopolo, talvez tu tenhas passado pelo maior temporal já vivido pela companhia. Como foi conduzir "esse barco" durante a pandemia?
Foi bem difícil, porque o nosso mercado de rodoviários desapareceu. Qual era o desafio? No primeiro momento, era de sobreviver. Nós trabalhamos com ônibus, que é um espaço confinado e coletivo. Como é que isso não vai impactar em uma pandemia? O segundo desafio era continuar com os investimentos para quando a crise passasse. Fechamos um grupo de trabalho para se preocupar exclusivamente com a crise, e outro para estar focado no futuro. No barco, quando se tem um temporal, o que se faz? Se reduz vela, adequa à intensidade do vento, amarra tudo que puder no barco e vai embora. E foi assim também aqui. Eu faço uma analogia assim: quando temos aquele ventinho gostoso e mar calmo, vai no piloto automático e só vamos controlando o que que vai acontecendo. Quando está no meio da confusão, tu tens que levar o barco na mão. E foi, mais ou menos isso, que aconteceu aqui. Durante todo esse período de mar tenebroso que a gente enfrentou na Marcopolo, eu tinha de tomar decisões bem complexas diariamente, pensando muito em cada uma delas, o impacto que isso traria. Tinha que enfrentar tudo isso e, ao mesmo tempo, continuar fazendo investimentos estratégicos que eram necessários como, por exemplo, o ônibus elétrico. A geração 8, em que já estávamos trabalhando há vários anos, tivemos de tomar a decisão de lançar no meio da pandemia. Foi o que nos ajudou na retomada do mercado ainda antes do final de 2021.
Achas que foi a pessoa certa no momento certo? Alguém com a coragem de quem desbrava os mares e com o respaldo de ser da família fundadora?
Isso também ajuda. Imagina no meio desse processo de pandemia fazer uma transição de CEO que ainda não estaria 100% pronto? Então, a gente se convenceu que eu teria de ficar pelo menos até o final deste mandato.
E como está o "mar" da Marcopolo para trocar o comando em março de 2023?
A fábrica está cheia, a gente está vislumbrando um ano muito bom. Em termos de mercado, a gente conseguiu reposicionar margens, porque, no meio dessa confusão toda, enfrentamos um processo inflacionário que foi brutal. Então tudo isso foi realmente a pior das tempestades. A gente conseguiu navegar por este mar furioso com poucos danos. Agora já está estabilizado. Tem ainda outros problemas, como falta de componentes, mas é outro momento, sem sombra de dúvidas. E agora eu tenho ainda seis meses para, junto com o André (Vidal Armaganijan, que vai assumir como CEO), fazer uma transição tranquila. Ele já me conhece, já sabe o que que eu valorizo. Eu saio do cargo, mas vou continuar aqui próximo, na mesma sala onde estou, para acompanhar e ajudar ele no que for preciso.