Quando você se olha no espelho, quem vê? Quantas vezes não nos reconhecemos. Quantas vezes por segundos, de relance, temos uma sensação esquisita de não reconhecer o próprio reflexo. Mario Quintana já dizia em seus versos, quem é esse que me olha tão profundamente, longamente, distante, ausente, estranho. Somos estranhos de nós mesmos. Estrangeiros silenciosos que chegam de uma longa viagem interna e de repente, sentam-se conosco, na mesma cadeira. Somos o que aparece na brecha do tempo, no reflexo do espelho, o entremeio da fala. Somos aquele que fala e diz, mas o que eu estou falando, de onde veio isso? Somos o ato falho. Somos esse outro que nos habita e temos medo.
Na verdade, somos muitos. Há aquele que imaginamos ser e que só existe em nossa cabeça. E nos imaginamos sempre tão bonitos, bondosos, pacientes, especiais. Esse que imaginamos se depara constantemente com aquele que somos na realidade e que geralmente nos damos conta dele, porque alguém nos aponta algum defeito. Daí descobrimos que não somos tão generosos assim, que na verdade somos até um pouco maledicentes. Descobrimos que não temos a paciência que achávamos que tínhamos, na verdade somos bem irritadiços. Achamos que estamos bem resolvidos com algumas questões, mas é elas aparecerem e já nos defendemos soltando a cachorrada atrás da pessoa que apontou para nossa ferida. Somos tão reativos às vezes que não conseguimos parar para pensar que o outro não está nos provocando ou julgando. Não, não somos o centro do mundo, as pessoas têm mais o que fazer do que ficar nos atiçando. Mas se algo doeu, opa, é preciso procurar entender que machucado tem ali.
Há aquele que somos na realidade, mas que somente os outros veem. Aquele que não lida bem com o feedback de quem nos conhece. Ficamos chateados com a reação a algum comportamento que tivemos. Geralmente dizemos que o outro não nos entende. No entanto, é bem importante escutar o que esse outro diz de nós. Mas não estou falando dos comentários em redes sociais após a postagem de uma foto bonita nossa. Falo daquele momentinho único com aquela pessoa querida que nos conhece muito bem e que não tem medo da nossa mordida, se nos disser algo. Ainda bem que os amigos são corajosos e confiantes. Eles nos ajudam a nos inscrever no real de quem somos.
E há aquele que somos sem saber que somos. Esse “eu” que se manifesta inesperadamente diante de uma situação específica. Que se mostra somente no entremeio, como no reflexo estranho do espelho. Esse “eu” do inconsciente, estranho, que quando aparece nos assusta, porque nos desaloja das certezas que temos. Esse “eu” que, às vezes, permanece amarrado em personagens perdidos da nossa história. Pode ser um amor antigo, um chefe insuportável, um professor sádico, um pai ausente, uma mãe sufocadora, um irmão invejoso. Esse “eu” que emerge e traz consigo um tesouro das profundezas e revela nossa interioridade.
Poderíamos reatualizar a pergunta e dizer: espelho, espelho meu, quem sou eu?