Pai eu te trouxe flores. São lírios. Estava andando, como tu fazia, pelas ruas e de repente um perfume bom de flores me invadiu. Fechei os olhos e lembrei das vezes em que tu aparecia com um buque de flores para mim, colhidas pelo caminho de teus passos. Às vezes era meio de semana e tu dava um assovio no portão de casa. Eu sabia que era tu. E sempre era. Tu e as flores. Eu descia sorrindo as escadas, abria o portão e a gente conversava sobre a vida naqueles minutos miúdos bem no meio da tua caminhada matinal. Pai, domingo teve eleições, foi a primeira vez que tu não votou. E eu senti tanta falta de conversar contigo. Fiquei imaginando tuas falas e tuas reclamações. E quando algo acontecia que alterava o cenário eleitoral era contigo com quem eu falava. Falava para desabafar, falava para ter um acolhimento da minha raiva. Falava contigo, porque falar é como estar numa casa de muitos quartos. Eu acompanhei toda a apuração sem poder trocar uma única palavra contigo. E tu, desde quando eu era criança, me ensinava a sintonizar no rádio e ouvir as notícias e a trocar de estação em busca de outras visões. Fui ser jornalista por ti, porque sempre vi a admiração em teus olhos para com os profissionais da imprensa. E fazem seis meses que tu não me lê mais.
Pai eu te trouxe flores. São lírios. As flores são feitas de vento e ternura. Assim como os dias. Tu nunca mais apareceu no portão de casa. Às vezes eu invento um assobio teu, só para ter a sensação boa de ir te receber. Mas olhar pela janela e não ver nada, ainda é duro demais.
Pai, foi tu que escolheu meu nome, lembra dessa história? Lembra? Mas agora, quem me deu um nome morreu e eu me perdi de mim.
Hoje eu leio as notícias por ti. Ouço o silêncio das ruas. Observo os objetos da cozinha, que não se amam, pois estão uns de costas para os outros. Aprendi contigo a delicadeza de aceitar o tempo do outro. Tu me dizia, espera e respeita, cada coisa está em outra. E lembro de Ferreira Gullar, que te lia e tu me dizia que como ele, também tinha “pensamentos”. A dor nos iguala.
Não sei mais te dizer da velocidade dos dias aqui. O que sei é que a vida passa voando. Mas a morte parece que voa para trás. É espantoso pensar quanta coisa sumiu depois da tua partida. As roupas, os objetos. Guardo teus documentos. Tua identidade está preservada.
Amanhã é dia de finados. É só mais um dia no calendário, bem sei. A morte é o rompimento da fronteira entre o dentro e o fora. Às vezes penso que morrer acontece quando a vida fica grande demais e não cabe mais no corpo. Então o corpo sucumbe e a vida continua crescendo, crescendo, até outro corpo não suportar mais. É estranho isso tudo, também porque tu, pai, virou um lugar. Por isso, pai, os lírios ficarão comigo.