Escrever é um jeito de gritar. Gritar e não ser considerada louca, porque louca é um jeito que o machismo encontrou de não validar o pensamento feminino. Chamar a mulher de louca é um modo de questionar a capacidade de entendimento da realidade. É uma forma de desvalidar. Embora, verdade seja dita, é preciso de muita força para não enlouquecer diante do que se vive sendo mulher. Pouco importa se se é jovem, velha, cis ou trans, o feminino é visto como território sem fronteira, aberto à invasão, espaço de abusos. Escrever ainda é pouco, mas já é um modo de desconjunturar a barbárie destes tempos. Não é fácil falar sobre esse assunto, pois há um “exército” de plantão a rechaçar qualquer texto que mexa com esse tema. Nestas horas lembro sempre de Guimarães Rosa, carecemos de ter coragem e romper o silêncio da boa educação na qual fomos ensinadas.
Nos últimos tempos (embora tenha sido desde sempre) há uma brutalidade sem pudor algum que insiste no gendramento do feminino pelo discurso falocêntrico. Basta lembrar dos últimos casos trazidos pela mídia envolvendo meninas, mulheres em situação de abuso. Quanta devastação. Quanto ódio às mulheres. Meninas tendo de gestar a violência de um estupro. Submetidas duplamente, triplamente à violência. Quantos níveis de horror conseguiremos suportar? Por que tanta raiva do feminino, raiva não só dos homens, mas de outras tantas mulheres? Essa raiva que alimenta o sadismo de uma sociedade hipócrita que se instaura em todas as instâncias de poder, seja no estupro, na violência doméstica, na misoginia, na pedofilia, no abuso sexual dentro da família, na violência obstétrica, na violência do Estado e até das religiões.
É preciso que possamos falar sobre esse assunto sem medo de qualquer tipo de coação, pois sim, há uma relação complexa entre violência, segredo e cumplicidade dentro das famílias. O que contribui para uma espécie de drama social e trauma para quem sofre o abuso. Os números são assustadores. O Brasil é o segundo país que mais abusa e explora sexualmente as crianças. A cada 24 horas, cerca de 320 crianças e adolescentes são vítimas. Mas é preciso lembrar que esse número pode ser ainda maior, uma vez que em apenas sete a cada 100 casos ocorre a denúncia. Destas, 75% das vítimas são meninas, na maioria negras e de baixa condição econômica. Os dados são do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Os números mostram ainda que os principais abusadores são o padrasto, a madrasta, o pai e a mãe, o que aponta para o fato de que 8 em cada dez casos de abuso sexual ocorrem dentro de casa.
Precisamos pensar, urgentemente, sobre os efeitos do sistema heteropatriarcal ao qual somos submetidos no que diz respeito a construção das subjetividades. Somos, todos e todas, ensinados desde muito cedo que é preciso manter a representação da família perfeita a qualquer custo. Há uma negação da violência e do abuso sexual. A objetificação do corpo feminino e da criança, a posição submissa das mulheres diante do masculino, a manutenção da idealização da família a qualquer custo, produz uma subjetividade que naturaliza a violência. O que causa estranhamento é porque falar sobre isso gera mais indignação do que o abuso sexual de uma criança ou mulher, em si.