Acho que não temos tido muita paz na nossa convivência. Há anos nos desentendemos. Você quer ser do seu jeito e eu quero que você seja de outro. Vivemos em disputas constantes. Sei que somos velhos amigos. Sei que acabamos nos entendendo, mas não sem mágoas, dores e ressentimentos. E isso é estranho. Por que sempre machucamos quem mais amamos? Muitas vezes tive vontade de me separar de você, sabe, cada um seguir seu caminho. Como se isso fosse possível. Eu sei, não há separação e assim seguiremos juntos até o fim. Tempos atrás li uma frase do Gaston Bachelard e me identifiquei muito. Ele dizia que em algum momento da vida teríamos que aprender a viver minimamente confortável dentro de nós mesmos. Essa toada tem me ensinado a percorrer os dias. Você não era mais como quando tinha 20 anos, mas eu também não sou. Mudamos. Você tem me ensinado sobre o que realmente é importante e eu tenho aprendido mais sobre auto-aceitação. Você tem me mostrado a importância de desacelerar e eu aprendido sobre a passagem do tempo e suas marcas. Demorou anos para eu entender que você é minha casa e assim como cuido do jardim, preciso cuidar de você.
Você carrega minhas cicatrizes, suporta minha raiva, protege minhas memórias, sente os dias e também me dá prazer. Tem dias que você grita e nem sempre escuto. Como quando dói. E você sabe doer. Desde sempre convivo com uma enxaqueca que não me abandona nem nos momentos mais felizes. E aprendi a conviver contigo latejando dentro de mim. Hoje tento parar para te ouvir. Silencio tudo. Desligo as conexões com o mundo externo. Tento respirar profundamente, mas nem sempre entendo o que você me diz. É impressionante como apesar de vivermos tantos anos juntos, ainda não nos compreendemos.
Às vezes penso que você chora para chamar minha atenção. Então compreendo que você carrega feridas que ainda não cicatrizaram e que elas doem de tempos em tempos. Mas eu disfarço. Eu e todo mundo. Não queremos que os outros descubram que somos frágeis, vulneráveis. Te escondemos atrás de um sorriso para selfies dos stories, apertado dentro de modeladores de corpo que não nos deixam respirar, modelado por bisturis que nos recortam de acordo com os padrões exigidos, no consumo de cremes e botox para esconder que estamos envelhecendo. E com isso, nosso peso não é mais o mesmo, nem nossa pele, nem nosso cabelo, nem nossa atenção, nem nossos ossos, nem nossos músculos, nem nosso coração.
Meu querido corpo, é uma expressão que sempre penso quando ouço meus pacientes falarem de si e de sua tortuosa trajetória de entendimento do que o corpo lhes diz. Também fico às voltas com meus questionamentos. Que corpo é esse que habito? Que discurso nosso corpo articula sobre nós mesmos? E lembro dos versos de Rupi Kaur que diz, minha mente, meu corpo, e eu moramos no mesmo lugar, mas às vezes, parece, que somos três pessoas diferentes.