Há dois anos plantamos glicínias em nossa casa. Quatro pés para cobrir alguns metros de terreno. Sonho de uma sombra e desejo de muitos pássaros. Com o tempo elas cresceram, verdejaram e os passarinhos foram se achegando, driblando os gatos e aprendendo as artimanhas dos galhos. A cada vez que a ajudo a se desenrolar de si mesma e a se amparar em suportes mais seguros, penso na psicanálise e no trabalho analítico. Aprendo com as glicínias que elas carregam em si uma natureza própria e que essa natureza jamais pode ser objetificada a partir daquilo que se pensa humano. O corte, iniciado há séculos, entre o pensamento, a ação, a cultura e o mundo natural, pode, de certa forma, ser visto como o processo de adoecimento do ser humano em seu ethos, em sua morada, em seu corpo. É também dentro do próprio corpo, que é totalmente ligado à natureza, onde encontramos o silêncio tão necessário à reflexão. Dias atrás, uma paciente, em atendimento online, disse que ouvia os passarinhos ao fundo. Logo pensei, são as glicínias que os estão chamando à celebração do que ainda vive. E então falamos sobre essa percepção que nos encontrou pelo ouvido, sobre a busca do entendimento da dor e a nossa desconexão com a natureza e o ser de si. Quando cuidamos da natureza, a natureza cuida de nós. Nela encontramos o simples e o originário. É dentro dela que podemos realizar o encontro do ser humano com o mistério.
Gosto de pensar a psicanálise e o trabalho analítico a partir das glicínias. É justamente ali que se dá o encontro entre o sagrado, a poesia e o mistério. Nem sempre de modo pacífico e quase sempre muito dolorido, mas não sem uma beleza infindável da descoberta humana do rosto por baixo da máscara. O silêncio das flores, a solidão do pássaro, nossos pensamentos flutuantes e aquilo que Manoel de Barros tão bem descreveu em seus versos sobre o prosaico da vida, eis a possibilidade do encontro consigo mesmo e o entendimento da potência da volta ao princípio, seja ele uma pedra, um sapo, a saliva ou a mãe.
Hoje as glicínias permitem que eu more aqui, que eu leia sob elas, que meus pacientes ouçam os pássaros que as visitam. Seus galhos em resistência ao vento e a chuva disciplinam meu olhar, lapidam minha fala e me ajudam a entender o idioma de quem pede ajuda. Nesse ínterim, me esforço para preservar a comunicação do sofrimento vivido e narrado, sem reduzi-lo ou naturalizá-lo numa abstração teórica. Existem muitas formas de sofrer, muitas mais do que os conceitos e os livros possam dar conta. Por isso, mesmo amparada em bases fundantes e fundamentais, busco na beleza das flores, sementes e mudas, modos de aceitar e me desenraizar para que juntos possamos sonhar o repovoamento de outros territórios, hoje tão dolorosos e estéreis, mas quiçá amanhã, um início de uma outra paisagem possível.