Habitamos espaços, tempos e memórias. Moramos em casas, às vezes sozinhos, às vezes com alguém. Moramos em muitos lugares, só quase nunca temos coragem de viver dentro de nós. Para conviver consigo mesmo é necessário muita paciência e amor próprio, porque na maioria das vezes, nos assustamos e, invariavelmente, voltamos para o lugar que dói. Já reparou que vira e mexe estamos envolvidos em relacionamentos que nos fazem sofrer? Pode ser no trabalho, no amor, na amizade, de repente estamos de novo vivenciando as mesmas humilhações, os mesmos sofrimentos. Ouço muito as pessoas e boa parte delas acreditam que a disputa em casa, na família, por exemplo, é por saber quem manda ou tem mais autoridade sobre os outros, quando na verdade a busca inconsciente é outra, é saber quem será o objeto do outro, quem será cuidado, protegido. Estamos falando de passividade, da entrega da subjetividade para o outro e isso parece tão tentador.
Desejamos que o outro nos pegue no colo, nos conte uma história, diga quem somos, como é o mundo lá fora e o que temos de fazer. Desejamos o nirvana, o êxtase, o encontro fusional com o outro, abrir mão do próprio ego, perder a relação com o eu. Claro, o EU é um cara muito chato, ele tem que dar conta da vida, do trabalho, das contas para pagar, tem que fazer serviço de banco, ir ao dentista, ler notícias sobre o covid-19, cuidar de si, fazer as compras para os pais, ter criatividade com as crianças pequenas em casa, entender de economia, política, relações humanas, fazer a declaração do imposto de renda, saber meditar, driblar o tédio, reencontrar a libido que sumiu em tempos de pandemia, e se possível, fazer terapia. Seria tão mais fácil, simplesmente, nos entregarmos ao outro e delegar a ele as responsabilidades sobre nossa existência. E depois disso, morreríamos. Sim, apesar desta ideia de entrega total ser uma grande atração ela também fala de morte, pois quando abrimos mão de nós mesmos, morremos, desaparecemos, ficamos invisíveis e aí retornamos para esse lugar de dor, mais uma vez.
A psicanálise nos ensina que a infância desenha em cada um de nós modos de gozo, de prazer, de satisfação. Por vezes, nos fixamos nessas modalidades e repetimos e repetimos e repetimos os mesmos padrões. Assim, passamos uma vida andando em círculos, de quando em quando, parece que nos damos conta de algo, mas sem ajuda é difícil compreender o que acontece, pois há uma narrativa inconsciente que sustenta isso. A pergunta retórica não é que lugar ocupamos na vida do outro, mas qual é o nosso lugar, e o que buscamos quando erotizamos o sofrimento? Cuidado com a medusa sedutora da sofrência, ela carrega em si a esperança que o outro mude, quando na verdade, somos nós quem temos que acordar.