Cresci vendo minha mãe fazer crochê. Na infância não dava importância, na adolescência achava coisa de gente antiga, agora que também envelheci, faço nós por fora para desatar o que tem dentro. Claro que não crocheto com a maestria dela, pontos bem dados, tessitura justa, trama organizada e perfeito acabamento. Eu teço o desigual, o díspar, o estranho, o imperfeito. Não faço crochê para cobrir as janelas, faço para me despir de minhas próprias angústias, faço de pedaços , restos de linhas e muitas lembranças. Amarro em cada nó dado um pouco do sol das manhãs em quarentena, um tanto do canto dos pássaros, a brincadeira dos gatos com o novelo de linha, leituras interrompidas, risadas de crianças ao longe. Amarro um pouco do verde do jardim, uns fiapos da brisa do outono e o farfalhar das folhas ao final da tarde. Dou um nó após o outro como quem costura e integra a própria experiência de estar viva. Nestes momentos não leio notícias, me isolo do mundo, da covid-19, do medo da morte e da arrogância dos idiotas.
O momento que estamos vivendo exige que deixemos de ser onipotentes. Sempre lembro de uma conversar rápida que tive, certa vez, com Moacyr Scliar. Falávamos sobre literatura, afetos, generosidade e então ele disse algo que nunca mais esqueci, que todo mundo deveria saber fazer algum ofício manual. Lidar com a matéria bruta, em essência, antes da transformação, nos ensina a ser mais humildes e menos arrogantes. Scliar, para quem não sabe, tinha como hobby ser marceneiro nas horas em que deixava de lado a persona do escritor e a profissão de médico. Assim, a partir do ensinamento, tento mexer com minhas agulhas e linhas e deixar com que elas me digam o que querem tecer e o modo como querem ser tecidas. Não há muitas regras, a não ser a do respeito ao processo.
Mexer com as mãos nos ajuda a pensar. E entre um nó e outro penso que já vivíamos um isolamento social bem antes disso tudo acontecer. O mundo já era outro. Mas, preocupados com nossa onipotência, necessidade e, talvez ignorância, não havíamos percebido. Habitávamos dias cheios demais. Hoje a realidade não comporta mais a ideia do “jeito que sempre foi”, como se pudéssemos voltar atrás, mesmo que um número imenso de pessoas proteste contra. Diante desta impossibilidade talvez devêssemos nos focar no aqui e agora. Descobrir porque somos tão insuportáveis para os outros e para nós mesmos é um bom começo. Talvez esse seja o momento de desapegar de velhos hábitos, acolher a mudança e mexer com as mãos, como disse Scliar. Assim, ao invés de querer controlar tudo, relaxamos e deixamos que a matéria nos molde. Quem sabe então, poderemos voltar à vida de modo mais humano e menos máquina.