Foi em uma madrugada de tempestade em 2009 que a empresária passo-fundense, Maria Luísa Camozzato, teve a ideia de criar um projeto que mudaria a história de centenas de famílias país afora: o Brasil Sem Frestas.
Assustada com um forte temporal, ela começou a pensar nas famílias em situação de vulnerabilidade, com frestas nas casas, sem proteção e com frio. Naquela mesma madrugada, o projeto saía da sua cabeça e começava a ganhar forma.
— Fiquei imaginando como as pessoas que moram casas com restos de madeira, cheias de frestas se sentem. As paredes escorrendo água, molhando roupas e utensílios, o frio. Senti a obrigação de achar uma solução. Depois de duas horas pensando sobre isso ouvi as palavras: chega de me incomodar, fecha com caixa de leite. Eu era química industrial, sabia das propriedades da caixa de leite, e que elas isolavam a temperatura. Eu tinha tudo na mão, a ideia e o conhecimento para colocá-la em prática. Escrevi toda a ideia no computador — conta.
Mas a ideia não surgiu sem razão, foi um impulso de gratidão em meio a melhora da Esclerose Múltipla, doença diagnosticada em 2003 e que a deixou com dificuldade de caminhar. Ela chegou a usar bengalas para auxiliar na locomoção.
— Seis anos depois de descobrir a doença, tive a sorte de ter um tratamento diferenciado que apresentou resultados maravilhosos e eu pude manter minha rotina de forma mais tranquila, o que propiciou com que eu pudesse andar com minhas próprias pernas e ser livre. Isso mudou minha vida e minha visão de mundo. Quando melhorei, lembrei dos conselhos da minha avó, que dizia que tudo tinha solução, menos a morte. Inspirada por esse conselho eu tive um insight naquela madrugada e percebi que deveria fazer algo para agradecer a minha melhora.
Maria diz que o projeto Brasil Sem Frestas é a essência de sua vida. A ideia, segundo ela, é copiada por mais de 20 cidades brasileiras.
Além de atender famílias carentes, o projeto contribui com o meio ambiente, ao dar uma nova destinação às caixas de leite. Isso evita que toneladas de embalagens Tetra Pak, que demoram cerca de 200 anos para se decompor, sejam descartadas. Em 13 anos de projeto, cerca de 350 toneladas de caixas de leite já foram reaproveitadas.
O projeto sai do papel
Zeferino Andrade, então funcionário do hotel da família, residia no bairro Hípica. Sabendo que o projeto precisava voluntários, levou Maria até a vila, para conhecer mulheres que faziam trabalho com artesanato. Dali surgiram os primeiros voluntários do Brasil Sem Frestas.
— Ana Reis Pimentel foi a primeira pessoa que me ajudou, mesmo sem nenhuma estrutura. Logo eram 12 ajudantes. O grupo permaneceu no bairro por cinco anos. Depois de dois anos em um espaço da igreja, foram para um galpão na casa de dona Lola, uma das voluntárias.
O projeto nunca teve sede própria, mudou de endereço seis vezes em 13 anos. Em uma oportunidade, usaram como área o salão de festas de uma das filhas de Maria. Atualmente, 50 voluntários trabalham no projeto, alguns deles presencialmente nas segundas e quartas-feiras, na rua Fagundes dos Reis, centro de Passo Fundo. A sede está há quatro anos no mesmo endereço.
Junto à sede, há um brechó com roupas e calçados doados pela comunidade. A renda é totalmente revertida para o projeto. Desde que o Brasil Sem Frestas nasceu, já são quase 500 casas forradas em Passo Fundo.
Como funciona
O alumínio da caixa de leite tem seis camadas. Uma de alumínio, que reflete o calor, e outras de plástico e papelão. O alumínio manda 95% dos raios responsáveis pelo calor para fora. Com as caixinhas, a água da chuva não entra, contanto que haja cuidado na maneira de construir a chapa. A casa fica aquecida no inverno e livre do calor excessivo no verão.
Em média, são utilizadas 1280 caixinhas nas paredes e no teto, que são instaladas com grampeador de estofador. A sede do Brasil Sem Frestas fica na rua Fagundes dos Reis, n° 97, no centro de Passo Fundo.
Escolha pela química industrial
Maria Luísa Camozzato nasceu em Passo Fundo em 22 de abril de 1956, um aniversário do Descobrimento do Brasil. É filha do médico João Carlos Oliveira, clínico geral e pediatra e de Liana Barbieux, formada em artes plásticas na UPF e pianista.
Maria escolheu estudar Química Industrial, inspirada pela proximidade com o avô Walter Barbieux, que administrava a Cervejaria Serrana, em Passo Fundo, de propriedade de seu bisavô, Jorge Barbieux. Jorge fez curso de cervejeiro na Alemanha e veio para Passo Fundo para produzir cerveja.
— O meu bisavô foi o primeiro industrial de Passo Fundo, tanto que o prédio do Senai no município leva seu nome. Decidi ser química industrial e trabalhar na cervejaria por toda a história da nossa família. Fiz estágio na Brahma e todo dia eu contava ao meu avô o que eu tinha feito no estágio. Foi muito bom sentir esse amor e essa proximidade com ele.
Com a avó materna, ela aprendeu que tudo na vida tinha solução.
— Minha família me ensinou muito. Minha avó me dizia que mesmo nas dificuldades, era fundamental não desistir e ter sempre esperança. Ela colocou isso de uma maneira muito forte na minha vida.
A idealizadora do Brasil Sem Frestas disse que a força feminina foi algo que ela experimentou na convivência familiar.
— Minha mãe saiu de casa aos 12 anos para estudar no Colégio Americano em Porto Alegre. Coragem não faltava. Ela foi uma mulher independente, gostava de ler e aprender. Tanto que depois de não se adaptar à capital, voltou para Passo Fundo, mas seguiu sonhando. Decidiu fazer curso de piano na capital, fez faculdade de Filosofia e foi professora de Belas Artes na UPF. Ela sempre foi uma mulher à frente de seu tempo.
Maria tem dois irmãos, Jorge, o mais velho e Luiz Carlos B. Oliveira, o mais novo dos três.
O casamento de 44 anos
Foi em uma tarde trivial, no centro de Passo Fundo, que Maria conheceu o homem que seria seu companheiro de vida. Aos 17 anos, viu Edegar Camozzato pela primeira vez. Desde o momento em que colocou os olhos nele soube que este seria seu parceiro.
— Casamos em 1979 e estamos juntos até hoje. Temos duas filhas a Fernanda e a Luísa e dois netos, o Luca e o João.
Edegar é engenheiro mecânico de formação. Exerceu a atividade no setor de construção e seguiu como empresário, hoje atuando no ramo hoteleiro da cidade.
Professora, empresária e mãe
Depois de se formar na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em Química Industrial, Maria Camozzato decidiu ser professora, atividade que exerceu por nove anos na Universidade de Passo Fundo.
— Fui monitora na UFSM e depois disso percebi que meu lugar era na academia. Mesmo assim queria ficar mais próxima das minhas filhas e mesmo sendo professora eu e meu esposo decidimos abrir um negócio. Assim nasceu a Casa Klaser, empresa que atuamos por 23 anos, em conjunto com outras duas lojas, ambas no centro de Passo Fundo. Fiquei administrando os negócios da família.
A esclerose múltipla
Aos 46 anos, Maria teve uma sensação estranha, perdeu o equilíbrio e não sentia os pés no chão. O diagnóstico viria dias depois: esclerose múltipla.
— Meu médico disse que minha vida tinha que ser de madame. Na hora pensei: meu Deus o que vou fazer, tenho duas lojas, de que jeito? Continuei, tentei ir tocando em frente, vendemos a Klaser Mulher, e depois fiquei com uma das lojas, mas vieram as grandes redes para Passo Fundo e, além da doença, teve esse desânimo. Pensei que havia chegado o momento de vender.
Até os 54 anos, ela fez tratamento efetivo, com pulsoterapia, um tratamento para doenças crônicas, devido aos surtos frequentes.
— Tive que andar de bengala. Imagina uma mulher de 46 anos de bengala entrando na igreja para participar e uma missa. Estava jovem, tinha toda uma vida pela frente. Mas lembrava sempre do conselho da minha avó.
Depois de muitas crises em virtude da doença, recebeu indicação de um profissional, que mudaria sua vida para sempre.
— Comecei a sentir que minha vida podia seguir normalmente, que eu teria minha liberdade de volta. O mais engraçado disso tudo é que quando eu era bem jovem eu tinha muito medo de ter algo que me impedisse de andar. Justamente fui ter uma doença que poderia ter ocasionado isso. Quando cheguei na consulta de revisão depois do novo medicamento, abracei meu médico para agradecer o que ele tinha feito por mim.
Após enfrentar tudo isso, ao olhar para trás, Maria diz que o plano não é dela, mas que todas as coisas que aconteceram têm um sentido mais amplo, divino.
— Tudo o que aconteceu me fez ver que Deus estava me mostrando e me testando. Ele precisava alguém para fazer isso. É a minha missão — conclui.
GZH Passo Fundo
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