Ainda serão necessários gestos de bom senso, comedimento e de disposição ao diálogo para solucionar as controvérsias que seguem envolvendo a tese do marco temporal para a demarcação das terras indígenas. O Supremo Tribunal Federal (STF), por nove votos a dois, decidiu na semana passada que é inconstitucional o entendimento, defendido por ruralistas, de que indígenas somente teriam direito a terras que estavam ocupadas por povos originários no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
O melhor caminho a seguir é buscar o entendimento entre as demandas legítimas dos dois lados
Apesar da posição da Corte, tramita no Congresso um projeto de lei com teor semelhante à proposta derrotada. Já foi aprovado na Câmara, agora está sob análise no Senado. O entendimento contrário criou um foco de crise entre os dois poderes, com potencial de afetar também o Executivo. O Congresso acusa outra vez o Judiciário de usurpar atribuições do parlamento e legislar. A reclamação é mais estridente na bancada ruralista, que ameaça obstruir votações nas duas Casas até o texto defendido pelo grupo ser levado a plenário. Deputados e senadores ligados ao agronegócio entendem que a situação atual traz insegurança jurídica ao campo. Assim, avaliam, famílias que estão há gerações em uma propriedade rural correriam o risco de ter terras reivindicadas para a demarcação de reservas.
O que parece estar adiante é um impasse. Afinal, não há consenso nem entre juristas sobre a validade da lei em tramitação no Congresso, se aprovada e sancionada. Há quem entenda que tornaria a decisão do STF sem efeito, mas também existem correntes sustentando que a visão da Corte, com a atribuição da última palavra sobre temas constitucionais, se sobreporia. Pairam ainda dúvidas sobre o que faria o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se tiver de enfrentar a questão, sancionando ou vetando. O petista tem compromissos públicos com os povos originários, mas também tem motivos pragmáticos para não melindrar o Congresso.
O melhor caminho a seguir é buscar o entendimento entre as demandas legítimas dos dois lados. Judiciário, Executivo e Legislativo podem contribuir para o distensionamento. O STF volta ao tema nesta semana para modular a decisão. Analisará, por exemplo, a possibilidade de indenizações pela terra nua a produtores que venham a perder propriedades e compensações a povos que, por alguma razão, não possam ter áreas demarcadas. Cogita-se ainda a possibilidade da apresentação de um substitutivo do senador Alessandro Vieira (MDB-SE) ao texto em tramitação. Seria uma espécie de meio-termo, assegurando prerrogativas de proprietários rurais e direitos dos indígenas. O conteúdo tem a anuência do Ministério dos Povos Indígenas e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APib) e pode ser defendido pelo governo.
Não há dúvida de que o Brasil tem uma dívida impagável com os povos originários, por séculos dizimados e expulsos das áreas em que viviam, muitas vezes de forma violenta. Reservas indígenas, em especial nas regiões mais ao norte do país, têm a vegetação nativa mais preservada, em linha com os compromissos ambientais do país e mesmo com os interesses nacionais. Por outro lado, como assinalado antes, existem famílias também há longo tempo instaladas em propriedades produtivas dentro de regiões reivindicadas. Muitos adquiriram glebas de boa-fé, sem qualquer responsabilidade sobre barbáries pretéritas, ou mesmo colonizaram regiões com o incentivo do Estado brasileiro. Há casos distintos, merecedores de análises individuais. Com equilíbrio, sensatez e espíritos desarmados será possível encontrar uma solução legal que garanta a paz para produzir e a justiça histórica e social.