É uma triste coincidência que exatos cinco anos após o atentado que matou 12 pessoas e tentou silenciar o jornal satírico francês Charlie Hebdo, desencadeando uma onda de repúdio pelo mundo, a mancha da intimidação e da censura volte a rondar a liberdade de criação e de expressão no Brasil. Ao determinar a retirada do ar e proibir a divulgação de qualquer peça publicitária da sátira bíblica de Natal da produtora Porta dos Fundos, o desembargador Benedicto Abicair, da 6º Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, argumentou que o fazia para “acalmar os ânimos” da sociedade brasileira, majoritariamente cristã.
Pela Constituição em vigor no Brasil, não cabe à Justiça ou a qualquer organismo do Estado proibir conteúdos artísticos ou informativos
Pode-se questionar a falta de sensibilidade de criadores de conteúdos com potencial de ofender a fé de terceiros ao se valer de sátiras e paródias. O próprio Charlie Hebdo, ressalve-se, era alvo constante destas críticas e de controvérsias sobre suas agudas sátiras de crenças religiosas. Mas, pela Constituição em vigor no Brasil, não cabe à Justiça ou a qualquer organismo do Estado proibir conteúdos artísticos ou informativos.
Produtores culturais, bem como os de informação e opinião, não são imunes a críticas. No entanto, há uma abissal diferença entre os recursos aceitáveis para o público ignorar ou demonstrar rejeição a uma obra e o uso da violência e da censura oficial para impedir que outros a apreciem ou mesmo a critiquem. A própria produtora Porta dos Fundos já fora alvo de um inaceitável atentado com coquetéis molotov no Natal passado – um dos autores identificados, membro de um grupelho de extrema direita, fugiu para a Rússia e está sendo procurado pela Interpol.
A naturalidade com que o desembargador, em ato de segunda instância, ordenou a censura, passando por cima do basilar princípio constitucional da livre expressão, é mais um degrau na escada de intolerância que se ergue no Brasil. A liberdade de expressão não significa apenas a defesa do direito de manifestação de uma posição com a qual eventualmente se concorde. É, sobretudo, o direito de opiniões e posições opostas circularem sem restrições. Quem desaprova determinado conteúdo, como ocorre com parte da opinião pública no caso do especial de Natal do Porta dos Fundos, pode desprezá-lo, criticá-lo ou até mesmo boicotá-lo, contanto que não haja intimidações ou violências – jamais, porém, pode-se aceitar o silêncio forçado, típico de ditaduras.
O resultado do ato de censura, como passou a ser regra em um mundo no qual o controle da informação foge cada vez mais das mãos oficiais, é amargo para todos os lados. Os criadores são claramente cerceados, o público vê seu direito de avaliação e crítica confiscado e os que pretendiam ver silenciada uma obra são confrontados com uma explosão de curiosidade, interesse e até de defesa do conteúdo censurado. No final, a restrição deverá cair em instâncias superiores, mas até lá fica a sensação de que os coquetéis molotov da censura e da violência, como já ocorrera no caso do Charlie Hebdo, sempre encontrarão algum eco em setores que ignoram os princípios mais profundos da liberdade e da democracia.