Por Valéria de Oliveira Thiers, professora doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, e trabalho como Professora Adjunta na PUCRS
O livro 1984, de George Orwell, está há quatro anos entre os 100 mais vendidos. Atingiu o 1º lugar nas vendas, em janeiro do ano passado. Como é possível um texto, de quase 70 anos, continuar tão atual? Orwell questiona o poder totalitário do Estado, onde não se escapa à vigilância do Grande Irmão (o conhecido Big Brother), ao uso da Novilíngua (atualizadas para as fake news), ao emprego de lemas incendiários ("Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado" - RIP Museu Nacional) e ao uso das teletelas em todos os ambientes (os amistosos "Sorria, você está sendo filmado").
Câmeras de monitoramento fazem parte das nossas vidas há muito tempo e em diferentes contextos. Diferente do que propunha a obra, não é só o Partido quem faz uso destas informações, nós também nos apropriamos destas tecnologias para expor livre, autônoma e publicamente conteúdos de cunho privado. Vivemos na era em que as pessoas se desvelam nas redes sociais. Youtubers prosperam com conteúdo veiculados na internet. As câmeras estão, literalmente, nas palmas das nossas mãos.
Nos habituamos às câmeras, como recursos de proteção patrimonial, em ônibus, bancos, comércios, prédios e residências. Em virtude da violência, nos habituamos às câmeras como recurso de segurança pessoal. E, também, nos habituamos ao uso das imagens como recurso para a manutenção de memória, dos fatos captados pelas lentes. As escolas fazem parte dessa sociedade que zela pela proteção dos recursos humanos e patrimoniais, através do uso do monitoramento de vídeo.
Imaginem uma mãe que termina sua licença-maternidade e retorna ao trabalho. Ela precisa deixar seu bebê em uma escola. No processo de escolha, se depara com uma instituição onde terá acesso às imagens online do seu filho. Qual mãe, podendo arcar com o custo, não preferiria essa? Poder saber que o bebê está bem, com uma espiada, não alivia? Há afronta à autonomia docente? Há comprometimento à liberdade de expressão do aluno? As imagens não servem como recurso de proteção às pessoas e ao patrimônio? Pensando na escola para os alunos mais velhos, e nas pessoas que lá trabalham, surgem as mesmas perguntas.
Situações de furto, violência e intimidações, podem ser senão evitadas, minimizadas ou esclarecidas através das imagens. Considerando outros casos, nessa semana uma denúncia à equipe do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente prendeu um professor de 30 anos, por suspeita de estupro de vulnerável contra uma aluna de 13 anos, em escola particular de Porto Alegre (nomes da escola e do homem não foram divulgados, em proteção à jovem). Imagens de câmeras próximas do colégio foram coletadas pelos policiais, que confirmaram o relato da menina. Em março de 2017, dentro da sala de aula de uma escola, em Cachoeirinha, uma adolescente de 14 anos, morreu em decorrência de uma briga com outras colegas. Não havia nenhum adulto na sala. O procedimento de investigação foi concluído em 10 dias, a partir do relato das testemunhas. Reitero, as imagens não serviriam como recurso de proteção às pessoas e ao patrimônio?