Por César Vergara de Almeida Martins Costa, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros
A classe dos advogados assistiu, estarrecida, ao vídeo que circulou célere pelas redes sociais, no qual a digna advogada negra e fluminense Valéria Santos, no pleno exercício de suas atribuições profissionais, viu-se rendida e algemada, no dia 10 de setembro. O fato ensejará um dos maiores desagravos públicos pelo Conselho Federal da OAB.
Lutava a advogada pelo direito de examinar a contestação oferecida pela parte adversa, à dialeticidade inerente ao Estado democrático. A advogada estava diante de uma "juíza leiga": leiga ao ponto de ignorar por completo o que é Justiça. A cena dantesca em que a advogada, ao cair de joelhos, implora pelo direito de exercer sua profissão, como lhe assegura a lei, desvela a ponta de um iceberg: uma nação que se rendeu ao arbítrio, à truculência, ao autoritarismo e ao discurso do ódio. Lamentavelmente, a leiga agressora não está sozinha. São inúmeros os casos de violação de prerrogativas profissionais da advocacia que revelam uma postura irascível de quem deveria precisamente apaziguar. A história é antiga. Ésquilo retrata com maestria as figuras míticas das Erínias (fúrias) que representavam as vingadoras implacáveis dos crimes de sangue: a Justiça vindicativa. Na peça Oresteia, com o auxílio da deusa Palas Atenas, as Erínias se transformam em Eumênides, e de fúrias vingadoras passam a protetoras da polis: é a passagem da Justiça como vingança para a justiça fruto do diálogo, ditada pela deusa Diké.
O advogado é essencial à administração da Justiça: quando a advocacia é algemada e prostrada, é a cidadania que se curva e se acorrenta. A "juíza" leiga que aferrolhou a advogada representa a opção por uma Justiça Brasileira da truculência e da fúria no lugar da Justiça do respeito ao diálogo e ao contraditório, fundamentais a um Estado de Democracia. Representa não só o despontar de um iceberg que há muito se ocultava, como o despertar de um projeto de nação para o qual devemos estar atentos. Um projeto antigo: sim, porque o Brasil do ódio é velho, negreiro e sempre gostou de grilhões.