O Brasil nasceu moderno, mesmo tendo sido descoberto no auge do Renascimento. Nossa arte não surge da ordem renascentista, mas dois séculos depois, com a transgressão do Barroco. O Barroco, que abandona a razão e o equilíbrio, que é movimento e paixão.
O Carnaval revela nossa vocação para o exuberante. No ambiente colonial, a rua era o palco de foliões que brincavam o entrudo. O povo jogava farinha, ovos e água pelas calçadas do Brasil. O Carnaval é resultado da miscigenação, do tambor da África e das procissões pagãs trazidas da Europa. Em suas partituras barrocas, convivem as igrejas de Aleijadinho, a pintura de Ataíde, o movimento em Niemeyer e as alegorias da Mangueira. Em Porto Alegre, o Barroco se faz vivo com bordados e floreios nas fantasias das crianças do quilombo do Areal da Baronesa.
Ocupação do espaço público por aqueles para quem o espaço existe
ZECA BRITO
Cineasta e carnavalesco do Bloco Maria do Bairro
O horror vacui, expressão latina que caracterizava uma postura de horror aos espaços vazios, é a chave para pensarmos de forma neobarroca a livre apropriação da rua. O vazio desumaniza a rua, se de um lado temos o flagelo dos sem-teto, de outro vemos o abandono do ambiente urbano pela sociedade civil. A cidade se protege com grades e interfones enquanto se multiplicam os espaços de insegurança. Como solucionar o problema do espaço público tomado pela violência e pelo crime organizado? A resposta encontrada pelo Carnaval é a ocupação do espaço público por aqueles para quem o espaço existe, o público. Fazer da rua coisa pública.
Um Carnaval de livre apropriação é aquele em que todos são donos da rua. A rua é minha não por posse ou privilégio, mas por afeto, por que ali eu construo pequenas utopias todos os dias. O Carnaval é a solução pacífica para uma cidade que quer de volta sua liberdade, que quer a rua para criar seus filhos e cultivar seus sonhos.
A economia gira e ambulantes tomam as calçadas. Bebidas, pastéis e churrasquinhos são consumidos, motoristas têm mais passageiros. O Carnaval gera trabalho para muita gente. Há sempre o perigo do capital hegemônico, de a capitalização excessiva descaracterizar a brincadeira espontânea. O Brasil tropicalista de Hélio Oiticica, Caetano Veloso e Gilberto Gil conseguiu cruzar as fronteiras do erudito e do popular e tinha o Carnaval como matriz. A estética relacional elaborada pelo teórico francês Nicolas Bourriaud nos ajuda a pensar a obra de Oiticica e aponta para o papel dos artistas que reordenam espaços e situações de convívio. A arte relacional propõe novos arranjos humanos, interações com o espaço, com o tempo, história e política.
Diferente da narrativa unilateral modernista representada pelo Carnaval espetáculo do Sambódromo, o Carnaval de rua de livre apropriação talvez dialogue em maior sintonia com os problemas contemporâneos. Cultura popular relacional. O Carnaval
reorganiza o espaço público, reelabora valores e destitui hierarquias. A rua, a praça e o beco como espaços de convívio democráticos. Ocupações de plasticidade e musicalidade, que revelam a diversidade cultural do Brasil.
Um bloco de Carnaval é uma experiência de troca humana, de prazer, suor e saliva. No ambiente antropofágico de um país tropical, a rua é palco de microutopias cotidianas.
Canta, povo da rua!