No livro A Trégua, Primo Levi relembra o encontro com os primeiros soldados russos que, em 27 de janeiro de 1945, chegaram ao campo de Auschwitz. Junto ao arame farpado, detiveram-se "para observar os cadáveres decompostos, os barracões arruinados e os poucos vivos". Levi e outros prisioneiros enfim reencontravam a liberdade. Devido ao episódio, a data foi escolhida como o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.
É algo diferente de outros acontecimentos lembrados pela comunidade judaica. Em Hanuká, festejamos a vitória sobre o reino selêucida; em Purim, o triunfo contra o plano genocida dos persas; no Dia de Jerusalém, a reconquista da cidade por Israel. São exemplos que evidenciam a tônica de nossas celebrações: lutamos, vencemos e nos libertamos. O 27 de janeiro, porém, foi marcado por uma remição que não emanou da fibra dos judeus, mas de eventos conduzidos por outros povos. Por que, dessa vez, não foi possível vencer o inimigo?
A resposta pode estar no mesmo sentimento que explica a ausência de manifestações de alegria por parte dos prisioneiros de Auschwitz quando viram os primeiros salvadores: a vergonha. Levi conta-nos como a hora da liberdade foi grave, com um "doloroso sentimento de pudor" que se transmitia até mesmo aos soldados russos: "Pareciam sufocados, não só por piedade, mas por uma confusa reserva. Era a mesma vergonha conhecida por nós". O autor descreve essa vergonha imobilizadora como aquela experimentada pelo justo perante a falta cometida por outra pessoa, fazendo-o afligir-se com a ideia de que a mácula tenha se entranhado irrevogavelmente no tecido da realidade e que nenhuma boa vontade sua tenha servido para impedir.
Que o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto permita-nos refletir sobre esse e tantos outros atos de violência, aqueles do passado e os de hoje, fazendo, sim, com que nos envergonhemos de cada um deles. Mas que essa vergonha não nos paralise: que sirva para mover a indignação, o protesto e atitudes que deem voz aos que não podem gritar e braços aos que não têm força para lutar por si.