Tesouro vivo da cultura brasileira, Nei Lopes recebe o título de Doutor Honoris Causa da UFRGS, que acaba de outorgar o mesmo título ao escritor nigeriano Wole Soyinka, Nobel da Literatura.
Nei Lopes e Wole Soyinka emergem de um mesmo berço, o da cultura nagô. Os orixás constituem, para ambos, os alicerces míticos que sustentam um universo de infinitas possibilidades criativas. Mas eles habitam o âmbito maior dos povos negros, cuja identidade, acima das divisões étnicas, existe em diversos léxicos africanos. Wole Soyinka rechaça a "consciência salina" que confinaria o pertencimento africano ao território continental. Nei Lopes celebra a pluralidade da herança africana na diáspora e no Brasil. Os dois, ao mergulhar na pluralidade da herança africana, realçam qualidades e princípios compartilhados entre suas diversas expressões.
Uma dessas qualidades é o respeito ao ambiente, sendo os orixás as próprias forças da natureza ao mesmo tempo em que representam e interrogam ponderações éticas próprias à ordem do convívio humano e da relação do ser humano com o planeta e o universo. Nei Lopes levou à Cúpula da Terra, Rio-92, o projeto Insaba, sabedoria da floresta: uma grande horta para pesquisa e divulgação do rico conhecimento fitoterápico da tradição afro-brasileira e indígena. Duas décadas depois, Soyinka viria ao Brasil sublinhar na Rio +20 esse aspecto ambientalista da tradição africana.
Outro valor dessa tradição é a reverência aos ancestrais. A obra de Nei Lopes, assim como a de Soyinka, incorpora-o e o faz viver vibrando. Traz para nós a vida doutrora com personagens palpáveis. Recria o Rio de Janeiro em mínimos detalhes históricos e geográficos. Na sua peça musical Clementina, início dos 1990, eu vi pela primeira vez, desenvolvido no texto de forma instigante e bem-humorada, a figura de Deus corporificada como mulher negra. Dez anos depois, vi cena semelhante em cinema, e hoje o protagonismo das mulheres negras a coloca com maior frequência. Mas naquele momento, foi uma das deliciosas e inéditas surpresas com que a ousadia criativa de Nei Lopes volta sempre a nos brindar.