Não fossem algumas circunstâncias particularmente delicadas, a posse marcada para hoje da nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, seria apenas mais uma previsível troca de comando no Ministério Público da União. O agravamento da crise política, porém, em boa parte devido ao acirramento de ânimos em consequência do combate à corrupção, impõe algumas prioridades para a sucessora de Rodrigo Janot. A forma como essas questões serão enfrentadas vai mostrar se o país está ou não apto a deixar um momento particularmente crítico para trás sem maiores traumas.
Um dos desafios, interno, será reconciliar grupos divergentes dentro do próprio Ministério Público. As divisões levaram a escolhida pelo presidente Michel Temer, com quem teve um controvertido encontro fora da agenda oficial em agosto, a ser a segunda mais votada na instituição. Outra contribuição poderá ser o restabelecimento de um melhor nível de diálogo com os Poderes Executivo e Judiciário. No caso do Planalto, o problema se deve à inédita situação de um presidente da República ter sido denunciado duas vezes no exercício do cargo. No caso do Judiciário, à forma como o ex-procurador geral referiu-se publicamente a citações de integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) em gravação de executivos da JBS.
Sob o ponto de vista do Congresso, a possibilidade de uma maior aproximação vai depender de como a nova procuradora irá se posicionar em relação à denúncia de políticos de diferentes partidos. Muitos deles, hoje, integram o primeiro escalão do governo federal. Diante de equívocos de seu antecessor, como os excessos de vantagens na delação dos donos da JBS, a nova responsável pelo Ministério Público Federal terá um papel importante para resgatar também a credibilidade da própria Procuradoria-Geral. O resultado vai depender do maior rigor que pretende imprimir às delações premiadas _ instrumento essencial para o combate à corrupção, especialmente no âmbito da Lava-Jato.
São importantes também, sob esse aspecto, as mudanças internas que se impõem desde o surgimento de suspeitas de atuação dupla de um procurador no mesmo polêmico caso da delação da JBS. Entre as providências imediatas, está a definição de algum tipo de quarentena para prevenir esses casos, no âmbito do Conselho Superior do Ministério Público Federal ou de projeto específico a ser avaliado pelo Congresso.
O país só conseguirá deixar a crise política para trás e avançar no combate à corrupção se conseguir manter os poderes fortalecidos e em harmonia. O desempenho da nova procuradora-geral a partir de hoje será decisivo para a busca desse reequilíbrio.