* Doutoranda em Educação da Unisinos
Pouquíssimos dias depois da manifestação em prol da supremacia branca em Charlottesville/Virgínia, já é possível refletir sobre seus efeitos. Obviamente, as imagens chocaram não apenas os Estados Unidos, mas o mundo. Para mim, a tarde de sábado (12 de agosto, dia do ocorrido) não poderia ter sido mais amarga. De fato, não é necessário ser estudiosa da temática racial, como eu, para ficar horrorizado diante da expressão do ódio e da intolerância justamente de quem representa o grupo dominante nos aspectos político e econômico. Os anos 1960 ainda estão recentes, especialmente quando se trata das inúmeras formas de violência a que negros estavam expostos com as leis de segregação racial (Jim Crow). Sem dúvida, muitas feridas ainda estão abertas.
No dia seguinte, encontro-me com minha orientadora daqui de Madison/Wisconsin para irmos até a igreja que ela frequenta. Estava ansiosa para ouvir o que ela teria a dizer sobre o ocorrido. Gloria Ladson-Billings é uma intelectual negra que traz um diferencial inquestionável para a educação multicultural Americana. Ensaiei algo como: "Me parece que hoje é um dia especial para ir à igreja, diante do que ocorreu ontem... Estou muito abalada". Com um suspiro, ela apenas disse-me: "Sim, está acontecendo de novo". Mais tarde, na tradicional igreja negra de Madison, o pastor abordou o tema durante sua pregação e recebeu uma manifestação calorosa de apoio e fé por parte dos presentes. Naquele momento, pude vivenciar a força das comunidades negras americanas.
Os canais de notícias como a CNN não deixaram de abordar a manifestação um só dia e as principais discussões giraram em torno das palavras de Trump. Na data do ocorrido, o presidente condenou a violência de "ambos os lados", o que causou profunda indignação da maioria dos jornalistas e entrevistados. Na terça-feira, Trump voltou a declarar que, apesar de discordar profundamente do fato, haveria entre os manifestantes de extrema-direita "pessoas de bem". Na opinião da maioria dos meios de comunicação, esta não é uma conduta adequada para um presidente dos Estados Unidos. Suas palavras têm a força e o poder de não apenas confortar, mas evitar ou incentivar novos episódios como este em Virgínia.
Mas não foi apenas na igreja negra e na mídia que a questão veio à tona em forma de posicionamento. Na quinta-feira seguinte, a Universidade de Wisconsin-Madison encaminhou um e-mail institucional mencionando o ocorrido e reafirmando seu compromisso com a segurança, a diversidade e a liberdade de expressão no ambiente acadêmico. Estes pequenos eventos, nos dias que sucederam ao violento manifesto de Charlottesville, geram a impressão de que, de modo geral, a sociedade civil não concorda com estes gestos em defesa da supremacia branca. Sob o ponto de vista de muitas pessoas, a postura de Trump e tudo que ele representa autoriza a manifestação de grupos de extrema-direita, que surpreendentemente parecem não se envergonhar em utilizar expressões e gestos neonazistas e conclamar frases como "vidas brancas importam".
Até o último sábado, muitos acreditavam numa era pós-racial nos Estados Unidos. Nas últimas décadas, o racismo por aqui tem assumido configurações distintas. Por mais que ele esteja presente, a maioria dos brancos negam que são racistas, e com convicção. Mesmo assim, preferem bairros brancos, são contrários a casamentos inter-raciais e também às políticas afirmativas. Racismo sem racistas, como mostra Bonilla-Silva. Ao criar estratégias discursivas para justificar as desigualdades e "não enxergar a cor", mantem-se as mesmas estruturas de dominação. Um racismo aparentemente soft, no entanto, pode ser tão duro quanto o racismo explícito do passado. Pela experiência brasileira, sabemos disso muito bem.
Ao que tudo indica, o horror de Charlottesville acendeu um alerta vermelho. Assim como muitos americanos e estrangeiros que aqui residem, espero que Trump continue sendo cobrado (inclusive pelos próprios Republicanos) com veemência, fazendo com que ele repense sua postura como presidente americano. Acima de tudo, espero que o ocorrido favoreça uma discussão mais aberta sobre os dilemas raciais, nos mais diferentes espaços e segmentos. Porque a questão racial é tema indelicado para se abordar nas conversas cotidianas, somente quem tem o peso da exclusão sobre suas costas sabe que o American dream não é tão doce como pretende ser.