* Ortopedista
Iniciamos um relacionamento conturbado, com ele contrapondo de forma agressiva, na sua coluna diária, um texto que eu publicara na seção de artigos da Zero Hora. Mas o mundo dá voltas, e ele se tornou um paciente cada vez mais frequente no meu consultório. Ciente da gradual e inexorável ação do tempo e dos seus excessos sobre o seu corpo, muitas vezes aparecia mais para conversar do que realmente para se medicar. Sempre exigia da secretária ser o último paciente, porque então não ficava restrito ao tempo convencional de uma consulta. Foi assim que conheci um pouco do homem, que, no seu caso, era mais interessante do que o mito que o seu talento construiu.
Dividimos um pouco das angústias, dos medos e até da decepção das traições, sentimentos que não escolhem classe social ou intelectual. Mas também comemoramos alegrias e vitórias, e mesmo quando eufórico com algum grande feito gremista, nunca se excedeu na flauta sobre mim, que sabia ser colorado. Afetado por uma vertigem crônica, compartilhei da sua superação ao aceitar incorporar no seu dia a dia o uso de uma bengala, símbolo da perda do vigor de outrora. Dotado de uma inteligência sagaz e uma energia mental invejável, era impressionante vê-lo regredir a um comportamento infantil frente a uma agulha de injeção. Mas ele era assim, um homem de contrastes. Tanto era assim que, embora tivesse uma legião de fiéis admiradores, também tinha quem o detestasse e o chamasse de louco.
O que realmente importa é que ele levou a vida do seu jeito, fez as suas escolhas e desenhou a sua trajetória com pulso firme e pincel grosso. Só foi derrotado pelo tempo e pela morte, adversários que ninguém até hoje conseguiu superar. Se eu tenho algo a lamentar nesta hora, além da sua perda, foi não ter dedicado mais tempo a essa amizade, por uma agenda nem tão importante assim. Pessoas como ele se encontram tão poucas em uma vida, que deveríamos estar mais atentos à sua excepcionalidade e à oportunidade de conhecê-las e de com elas conviver. Muitos cantarão os teus feitos como cronista e figura pública, certamente bem melhor do que eu. A mim cabe me despedir do amigo, do homem por detrás do escudo, com seus erros e acertos, sua coragem e seus medos. Adeus, meu caro amigo, Paulo Sant'Ana.