Se somos um país de maioria negra, por que a visibilidade do negro em peças de teatro é ainda tão baixa? Penso nos clássicos envolvendo protagonistas negros como Otelo, Anjo Negro,O Negrinho do Pastoreio. Todos escritos por homens brancos.
Vou menos ao teatro do que deveria ir. Vou bastante, em relação à maioria da população. Em 2011, já com quase 15 anos de vida teatral, pude assistir ao que, talvez, mais tenha se aproximado de uma experiência de teatro negro. Race, de David Mamet, na Broadway. Talvez não. Talvez a ideia de um teatro negro tenha se materializado bem antes, com a apresentação do Le Costume, dirigido pelo Peter Brook, no teatro Renascença, quando o Porto Alegre Em Cena ainda respirava. O fato é que nem Mamet e nem Brook pisam na terra negra de Senhora das Armas, essa peça do coletivo Montigente, dirigida por Gil Collares, apresentada na pequena sala Carlos Carvalho da Casa de Cultura Mario Quintana, entre os dias 9 e 18 de junho.
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No palco, um Brasil cismado por ideologias, racismos e religiões. O fascismo disfarçado de neutralidade. A isenção impossível. O lado que, cedo ou tarde, essa guerra social o fará escolher. Brecht é eco e estado. Há algo de Moonlight na objetificação do corpo negro masculino, esse corpo que se torna coisa, mas, diferentemente do drama americano, aqui o corpo está morto. Antes de o espetáculo começar, uma representante do coletivo salienta a violenta desocupação da Lanceiros Negros como fator decisivo para se entender a força da peça hoje. Com Lanceiros ou sem Lanceiros, entende-se. Essa Senhora das Armas fala por si. Fala por nós.
Há uma fragilidade nas quatro atrizes que contrasta com a rigidez do corpo de Junyor dos Santos. Uma fragilidade que dinamita essas bordas anacrônicas entre atriz e personagem. Sentada sobre as armas dos filhos que já morreram, Silvana Silvia, a Senhora das Armas, atualiza a Carrar, de Brecht, para a Porto Alegre de hoje. Mislaine de Oliveira, enveredando pelo minimalismo, atinge momentos de cinema.
A cena em que os seus cabelos são trançados é dessas que ficam para sempre.
Não sei quando Senhora das Armas será apresentada novamente e nem se será apresentada novamente. Vale acompanhar os passos desse coletivo Montingente.
Bruma, cerração, fog, teatro, fazem parte dessa mesma matéria chamada desaparecimento. Sorte de quem vê.