Muitas nações tomam o Pacto de Moncloa como modelo para a solução de crises graves, como a que o Brasil hoje atravessa, aguda, ampla, angustiante e agravando-se a níveis assombrosos. Ora estamos fora do rumo, com trevas pela frente; polarizações e discórdias se agravam, e predomina cenário de temerária e violenta hegemonia de classe, com o triunfalismo despudorado do capital financeiro operado via FIESP e PIG, com seus títeres nos parlamentos e executivos do país.
Esta operação liquida-fatura e a realização de reformas de teor anti-social, sem diálogo, análise ou pertinência histórica e técnica (o hipergolpe), são provocações abusivas que levam a nova onda de tensões, resultado previsível do quadro de violação social ora praticado. Vitórias de Pirro, ilusão de abusadores imprudentes. A conta já existe e virá para todos.
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Pagamos alto preço em sofrimento e perda de tempo, quando poderíamos capitalizar a imensa capacidade de trabalho e criação dos brasileiros para construir coletivamente cidade, estado, nação e sociedade melhores; é esta a urgência.
Moncloa: após a ditadura Franco (1936-1975), a Espanha enfrentava forte crise econômica (inflação de 26%) e social, sem a mínima estrutura democrática. Indicado pelo rei Juan Carlos I em 1975, mas já como presidente eleito, em junho de 1977, Adolfo Suarez abriu o diálogo entre todos os partidos, esquerda, centro e direita, em reuniões no Palácio la Moncloa, em Madri.
Logo assinou-se o Pacto de Moncloa, em dois documentos, os critérios e o pacto. Predominava a preocupação econômica, mas pactuou-se também previdência, trabalho, liberdade, direito, energia, defesa e educação. A Espanha organizou-se vigorosa e tornou-se democracia sólida, capaz de sobreviver à tentativa de golpe militar, em 1981; o pacto tornou-se, deste então, a miragem a provocar nações aflitas em tempos de crise.
Democracia é a solução racional e prudente para qualquer sociedade complexa. Ela implica diálogo, cooperação, prudência e harmonia na produção de pactos que garantam a unidade em que todos são atuantes e beneficiados. Líderes podem facilitar, mas nada prospera sem decisão coletiva para diálogo e consenso. É isso que falta no Brasil, onde sobram hipocrisia, violência, egoísmo e irracionalidades, sobretudo nos ambientes governamentais e em seus cúmplices no andar de cima.
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Tal como em Moncloa, primeiramente (#ft) as reformas. Em um país em que precisamos reforma urbanística para erradicar favelas, e nos livrar da baixa escolaridade com revolução educacional, em que urge reforma sanitária e ainda falta boa reforma agrária, explique-se a prioridade urgente decretada por uma "reforma" que apenas loteia a poupança previdenciária para poucos beneficiários, e outra reforma que avilta ainda mais a péssima remuneração do trabalho, em favor de uma proto-burguesia suicida, tacanha e covarde? E privatizadores que nada mais são que incompetentes incapazes de gerenciar o Estado e seus órgãos? E chamam o recuo à pré-história de modernidade... o que explica isto é a cupidez incontida de rapineiros, que ora violam e usurpam o destino da nação.
Que nosso pacto seja não em palácios repletos de bananas alienados, mas no Boteco do Tio Villa na esquina de uma favela, para que saibam do que estão cercados, onde poderemos pôr em samba os versos de Antonio Machado, que animaram o pacto de Moncloa: Está el hoy abierto / al mañana. Mañana, al infinito. / Hombres de España, ni el pasado ha muerto, / ni está el mañana en el ayer escrito.
* Francisco Marshall escreve mensalmente no Caderno DOC.