Ao que tudo indica, o outono agora começa a ser inverno. Ela me pergunta se estou semeando acontecimentos, e eu não sei o que responder. Viver em função de algo que se espera que será pode ser difícil demais para os imediatistas. Respondo que não sou imediatista, mas também não sou refém dos planos. "Semear acontecimentos é diferente de fazer planos." Caminhando pela estrada de terra com um pesado livro nas mãos, ela tentava explicar a diferença entre semeadura e planejamento. Eu entendo.
Um pássaro estranho chama a nossa atenção. Lembramos de O Ornitólogo, e desse novo cinema português. Ela conta que está namorando um menino mais jovem, muito parecido com o protagonista do filme de João Pedro Rodrigues, e não está gostando, assim como não gostou do filme. Sua faixa etária em relacionamentos tem sido acima dos 52, agora namora um de 37. Poderia ser mãe dele, e, para ela, isso não é nada bom. Namorando um rapaz que poderia ser seu filho, constata o quanto mimou o próprio filho. Namorar o rapaz a faz refém da própria criação. Hoje, aos 57, ela percebe que errou.
Em casa, a TV já não existe mais. Ela conta sentir uma estranha azia sempre que escuta a voz do William Bonner. A musiquinha do Jornal Nacional lhe causa arrepios. A TV, imutável, a faz testemunha de um próprio tempo que não quer repetir. Sempre as mesmas vozes, sempre as mesmas caras. Conta querer ouvir outros timbres, experimentar novas grades. O relacionamento com aquele que poderia ser seu filho a faz viver coisas que já não quer mais.
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No rádio do carro, entre jingles, escuta a propaganda do governo estadual e tem a nítida sensação de que o marketing de Sartori ainda tem cara de eleições. Ele segue prometendo o impossível: melhorias. Folheio o caderno feminino e acho tudo tão qualquer coisa. Me pergunto onde estaria, hoje, uma mulher como Gilda Marinho. Alguém ainda lembra de Gilda Marinho nessa Porto Alegre agora cada vez mais fria?
Voltando para casa, nos despedimos. Minha filha telefona quando já estou sozinha. Entro no café para falar com ela. Não demora e a ouço chorar. Digo que quero vê-la, mas ela prefere que não mais. Não agora. Pelo menos. Ao contrário de mim, está casada com um homem mais velho. Um que poderia ser seu avô. Tenho medo de homens assim. Tenho medo de mim. Minha filha encerra a chamada e eu não lembro as últimas frases dela. Penso nos acontecimentos que ela está semeando para si. Penso na filha que semeei.
Peço um café. Penso no açúcar. Prometo começar de novo. Engulo dois brigadeiros e volto a pé pelo caminho mais longo. Olho a vizinhança. São poucas as janelas nas quais eu gostaria de entrar. É um pouco triste viver em cidades assim.
Chego em casa sozinha. Desconecto a antena digital do televisor. Desço três andares e a coloco no contêiner do lixo seco. Quem precisa de TV aberta no Brasil de hoje? Antes de subir, fumo um cigarro na calçada. Sozinha. Comigo mesma. Olhando para a noite do Centro Histórico, noto que um novo pixo nasceu no prédio da esquina. Tento reconhecer o autor, mas aquela parece uma nova assinatura. Fotografo o efêmero para talvez torná-lo eterno.
Antes de dormir, penso no que semeia aqueles que odeiam. Penso nos pichadores escalando alturas. E quase sempre sonho com homens alados.