Leandro Karnal me parece um historiador competente. Não tenho condições de afirmar com certeza, mas sua trajetória nesse campo é – sob o olhar de um leigo – muito profícua. Já como consumidor dessa nova onda de filosofia pop que vivemos aqui no Brasil, sempre fui mais o Clóvis de Barros, mas não posso negar o sucesso de Karnal. Ao falar sobre empreendedorismo, no entanto, consigo afirmar: ele apenas arranhou a superfície. Usou – em um vídeo altamente difundido nas mídias sociais durante a semana – alguns dos argumentos clássicos a respeito de uma ética do empreendedorismo.
O problema é que Karnal não sabe o que é empreendedorismo. Afirma que a origem do empreendedorismo é a dicotomia entre winners e losers existente na cultura americana. Uma bobagem sem tamanho. Partindo de uma definição mais estrita (empreendedores como donos de negócios), o empreendedorismo existe desde que há comércio no planeta. Bem, há alguma controvérsia sobre o assunto, mas é coisa de dezenas de milhares de anos antes de Cristo. Gosto muito de história (sobretudo história do empreendedorismo e da inovação), mas não sou historiador, e não posso cravar aqui uma data. Se o empreendedorismo é tão velho quanto o comércio, o que é verdade, também é verdade que hoje empreender não significa apenas ser dono de um negócio.
A definição contemporânea que considero mais completa é: empreender é utilizar o mercado para resolver problemas reais das pessoas. Em outras palavras, é criar produtos e serviços para suprir necessidades. Há uma diferença fundamental entre ser inovador (criar novos produtos ou modelos) ou ser apenas empreendedor (oferecer produtos e modelos pré-existentes). Ambos os casos podem acontecer dentro de uma estrutura que já existe, como uma empresa consolidada, uma cooperativa, uma associação, um órgão de governo. Ou seja, hoje, empreender não necessariamente significa abrir uma nova empresa.
Bem, isso significa também que nem todo empreendedor é capitalista. Se há empreendedores no setor social e no setor público, esses certamente não o são. Esse é o erro conceitual que cometeu outro intelectual brasileiro nesta semana. O antropólogo Carlos Gutierrez teve sua entrevista bastante republicada nas mídias digitais. O ponto central era interessante: a derrocada de algumas retóricas de esquerda em um contexto onde mais gente quer empreender.
Lá pelas tantas, Karnal afirma que os departamentos de RH são os principais difusores de uma suposta teologia do empreendedorismo. Claramente, o historiador tenta manifestar uma ojeriza que possui em relação ao mundo das empresas (e que, confesso, eu também sinto) usando a palavra empreendedorismo para descrevê-lo. Um erro que faz qualquer um que entenda minimamente do assunto fechar a janelinha de seu vídeo.
Se a reflexão de Karnal serviu para alguma coisa, foi para chamar atenção para o fato de que há mesmo muitas esquizofrenias em torno do empreendedorismo. A primeira delas é de quem observa de fora sem entender nada e apenas manifesta sua repulsa. A segunda é de quem crê que todo empreendedor precisa fazer seu negócio crescer a ponto de se tornar um grande empresário. E assim vamos encontrando várias outras, como o chamado empreendedorismo de palco. Mas, antes de tudo, é preciso mergulhar um pouquinho no tema para se permitir fazer críticas minimamente fundamentadas.