A segurança cega e surda com que o governador Sartori age, às vezes, é tão profunda e impermeável, que parece, até, que somos governados por uma muralha.
O jeito e olhar plácido dão a impressão de pessoa aberta, que perscruta o mundo para decidir. Mas os fatos mostram que nele se esconde alguém cioso de si e tão fechado ao mundo, que é capaz, até, de pretender revogar a Lei da Relatividade e pedir ajuda a Einstein.
Na gritante escolha do novo secretário de Segurança, o lema da campanha eleitoral – "meu partido é o Rio Grande" – virou frase a esmo. Ou foi invenção de "marketing" para iludir os crédulos? Por que este tapa de agora, no rosto de cada rio-grandense?
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Já ao assumir, o governador deu uma secretaria de Estado à própria esposa e ninguém viu que nisso se escancarava um gesto de protecionismo familiar, fora da ética e vedado por lei.
Agora, a oculta soberba extravasou os limites do absurdo.
O novo secretário de Segurança nunca explicou por que foi negligente – como prefeito de Santa Maria – ao licenciar e permitir o funcionamento da ratoeira humana instalada na boate Kiss, que matou 242 pessoas por asfixia. Nunca deu qualquer explicação ou escusa, nem a da humildade de admitir que foi omisso ao não perceber aquilo que, há muito, era tragédia anunciada.
Mesmo assim, o governador o põe agora no comando da segurança pública. Com que credenciais – indagam todos – vai chefiar a Polícia Civil, a Brigada e os bombeiros?
Mas Cezar Schirmer é honesto e confessou, de público, que nada entende de segurança pública. Para suprir a ignorância, promete rodear-se de assessores "que conheçam o assunto".
Quem nada sabe pode mandar em quem diz que sabe?
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Conheci Cezar Schirmer no final de 1979, quando retornei do exílio e ele (levado por Ibsen Pinheiro e Pedro Simon) estava entre as centenas de pessoas que me receberam no aeroporto. Era ele, então, o mais jovem deputado estadual e nossa amizade consolidou-se em 1981-82, quando fui assessor político da presidência da Assembleia.
Não é só por isto, porém, que tudo de agora me dói e me perturba.
Pergunto-me se o jovem correto e lúcido que conheci foi engolfado pela síndrome da imunodeficiência adquirida na política, aquela espécie de aids que brota do exercício do poder (qualquer poder) e corrói o melhor dos melhores sem que se saiba a origem.
Ou exercer o poder desarticula e deforma e faz do político um simulador nato, mero ator que só representa um papel, como se a vida fosse um teatro do engano?
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Em Santa Maria, nada foi ao acaso. Houve um crime preparado pelo desleixo e alimentado pela cobiça. Os implicados compõem uma extensa rede que vai dos donos da boate à negligente prefeitura e aos bombeiros-burocratas, passa pela banda fogueteira, pelos "seguranças" que trancaram as saídas e conclui, de novo, nos donos da Kiss.
Vamos para o quarto ano impune. A lentidão da Justiça dissipa culpas e faz esquecer provas. E, nessa marcha, os únicos culpados serão os 242 mortos, porque lá estavam naquela tétrica madrugada...
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A boate Kiss é só um espelho da insegura Segurança Pública.
Nada é seguro hoje em dia. A sociedade de consumo criou novos deuses, multiplicou a ambição, quase já não há em que ou em quem confiar. Até o leite pode ser falso e nem a água potável é confiável. A política nos engana e nos rouba por um lado, o assalto de rua nos mata para levar o carro, a carteira ou o tênis.
Há uma exacerbação da violência, mas os governantes ignoram as causas da expansão. Pensam só em mais polícia e mais penitenciárias. A lei é branda e não vai às origens do horror. A violência nasce da vulgaridade e da ignorância, mas todo dia o vulgar entra em nossas casas pela TV. E em cores, numa tácita escola do horror.
Nesse quadro de embuste, surgem os "salvadores". De um lado, o palavrório dos políticos. De outro, "pastores" de igrejas inventadas por eles próprios, distribuem "milagres" pela TV em troca de ouro.
E a violência cresce. À noite, a rua provoca medo e nos aprisionamos em casa, com medo do que apareça na televisão.