Vocês já viram este desenho. No quadro da sala de aula, um bloco deslizava sobre um plano inclinado, que a bem da verdade mais parecia um rudimentar triângulo. Eu costumava animar a abstração com a cena de um homem a descarregar uma carroça, usando uma rampa improvisada, tentando evitar que sua caixa rolasse ou emperrasse enquanto vinha raiando a manhã.Já podem imaginar: na hora do cálculo eu sempre errava. No mundo mágico da física do colégio, o atrito era sempre desconsiderado, para agonia de meu pobre carregador que, se pudesse usar de tal prerrogativa na realidade, teria sua vida muito facilitada.
Desculpem-me se lhes abro um terrível escaninho, lá onde guardamos as pastas de nossas recuperações e ameaças de reprovação. Deixemos quietos os bilhetes assinados pelos pais. Prefiro que lembrem comigo de outras extravagâncias das ciências, como movimentos uniformes no vácuo, todos aqueles eventos submetido às condições normais de temperatura e pressão. Se dependêssemos de ter CNTP por aqui, Porto Alegre jamais receberia questões de física ou de química.
Química. Elétrons saltando camadas no diagrama de Linus Pauling, que mais parecia uma forma bêbada de ligar pontinhos. Partículas que professores jamais puderam mostrar. Nisso a biologia era mais honesta. No laboratório, passávamos horas mesmerizados, olhando para hemácias ou para a estranha ocorrência losangular do tecido da cebola, quando não outras minúsculas formas de vida que algum gaiato tratava de produzir.
Tudo para dizer que, apesar disso, somos nós, os professores de literatura, os acusados de viajar em sala de aula. Reparem: se eu pudesse retirar elementos das tramas, alguma coisa essencial como o atrito, Dom Casmurro seria uma obra trivial. Gregor Samsa, não duvido, teria sua metamorfose explicada em um dia de CNTP. Se pudesse saltar camadas, Anna Kariênina se jogaria em frente ao trem não para o suicídio, mas para acordar em um dia italiano, ainda crente no amor do Conde Vronski. Porque nós, ao contrário dos outros, só pedimos a vocês para acreditar – usando do Nelson – que a vida é como ela é.
Linus Pauling!
Quem sabe o carroceiro ainda precise de nossa ajuda para descarregar.