Luís XVI já está com o pescoço sobre o trilho vertical da lâmina. É um tempo de ódios e vinganças. Breve, a guilhotina fria despejará as cabeças de Danton e Robespierre. Quando cessará o Terror?
A crise parecia ter esteio sólido. O Judiciário operava sereno em seu papel, incólume às deformações horríveis dos outros poderes, que se esboroavam em incompetência, em infâmia e em corrupção. Apurava os fatos com profundidade e aplicava a lei com firmeza e distância; e os poderosos, corruptos e corruptores, começaram a experimentar, como nunca, o gosto amargo da palavra "lei".
As ruas, estarrecidas e vibrantes, acompanhavam o surgimento dos novos heróis. (O povo não percebe que heróis têm vida breve e que a esperança está nas instituições.)
O juiz, porém, não é moralmente superior a ninguém. Ou se limita ao seu papel, já relevantíssimo, ou corre o risco de escorregar para o campo arriscadíssimo das paixões.
A Constituição (fundamento e esperança de uma sociedade construtiva) protege firmemente, nos incisos X e XII do artigo 5º, a privacidade do indivíduo, qualificando-a de "inviolável". Essa proteção só é atenuada para fins de processo crime, para investigar o fato criminoso e para fundamentar a decisão sobre ele. Não há permissão de quebra da privacidade para informar o debate político, para dar conhecimento ao público das práticas constrangedoras de autoridades e pessoas públicas, ou para o achincalhamento moral de quem quer que seja.
A Lei 9.296/96, que regula a escuta telefônica, é enfática no definir o seu uso exclusivamente dentro da investigação e do processo penal, determinando, inclusive, a destruição de tudo que não caiba neste estreito limite. Expressa diversas vezes o segredo de justiça para a escuta, e, no art. 10, criminaliza a quebra deste segredo com objetivos não autorizados na lei.
Que regimes se valeram da invasão da privacidade para aviltar pessoas, destruir carreiras e eliminar opositores, se sabe muito bem. Não se pode converter a penalmente importantíssima interceptação telefônica e de dados em instrumento comezinho e cruel do jogo político. Não é papel da Justiça fornecer matéria para o ódio e o escárnio entre pessoas.
A tarefa de julgar já é em si relevantíssima e talvez só devesse ser exercida pelos deuses. O juiz há de se limitar ao processo. Excedê-lo só exporá sua miséria; entrar no jogo político atestará sua fraqueza. O juiz não pode servir a dois senhores: ou serve ao Direito, ou não serve.