Duas crianças africanas invadiram minha semana, uma de ficção e outra real.
De tanto ouvir falar sobre Beasts of No Nation, me aventurei na frente da tela do computador para assistir ao primeiro filme original da Netflix. No início, fiquei embevecida pela história de Agu, um menino africano que mora numa zona protegida de um país em guerra. As cenas iniciais são espetaculares: Agu e seus amiguinhos passam pela vila tentando vender uma TV. Não é qualquer TV: é apenas a moldura de um aparelho recolhido do lixo. Aos improváveis compradores, eles tentam provar não ser uma TV qualquer. Quando lhes dizem que é lixo, eles retrucam: trata-se de uma "TV da imaginação", e enquanto Agu vai mudando os canais e fazendo a trilha sonora, os outros se desdobram na tela imaginária encenando novelas, lutas, musicais Fiquei embevecida com a criatividade de crianças que enfrentam a adversidade, a falta de escola, a guerra que sabem que existe mas ainda não enxergam. E o encantamento acaba aí. Não vou contar o final do filme. Eu não sei o final. É que mal cheguei à metade. Na sequência das primeiras cenas, a zona de proteção é invadida e acaba a brincadeira. Agu consegue fugir, mas é cooptado por guerrilheiros que transformam crianças em guerreiros implacáveis. Passei mal.
Quantos Agus haverá por aí?! Se a ficção doeu tanto, a realidade é inimaginável.
Parece tão longe, não?! Um país qualquer da África
Mas aí, de um país da África, a Gâmbia, recebi uma carta de uma menina de seis anos chamada Adama. Ela não diz nada. Só desenhou bolinhas e risquinhos verdes que lembram meu primeiro caderno. Escrevem por ela, contando que tem sete irmãos e mora numa casa de barro, que vai à escola. A foto mostra uma criança linda, com roupa rasgada e cabelos bem cuidados. Adama não foi cooptada pela guerrilha. Não é uma criança de ficção. É real. E chegou até mim por meio de uma ONG. Eu cheguei até ela por causa de um de meus sobrinhos que, diante da tragédia do terremoto do Haiti, cinco anos atrás, se sensibilizava com as crianças de lá, mas se preocupava mais com as africanas, para as quais, em sua opinião infantil, ninguém dava bola.
Levei cinco anos para achar uma forma de ajudar as crianças com as quais ele tanto se importava. Talvez não mude muita coisa na vida delas, talvez sirva só para aplacar nossas consciências ou para sermos criticados diante de tantos meninos e meninas próximos que precisam de ajuda. Talvez eu não devesse falar sobre isso publicamente, por que, como diz a Bíblia, a mão esquerda não precisa saber o que faz a direita. Mas não dá só para ficar triste, diante da ficção ou da realidade.
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