A fumaça e o perfume de carne grelhada do Acampamento Farroupilha que se espraiam pelo centro de Porto Alegre festejam os 180 anos do primeiro grande movimento republicano do Brasil. Em 20 de setembro de 1835, os farroupilhas tomaram Porto Alegre e o presidente da província fugiu às pressas para Rio Grande. Tão às pressas, que deixou as chaves do palácio, a mulher e os filhos com o cônsul dos Estados Unidos, Isaac Austin Heyes.
Era a primeira vez que se entregava o governo, de mão aberta e "em agradecimento", a um representante estrangeiro!
Mas a capital da província foi republicana apenas por nove meses. Como se a História fosse uma sucessão de ciclos que se alternam e repetem, o suborno apareceu na vida política, manchando o que fora conquistado com luta e sacrifício. O tenente imperial Henrique Moysé, preso no 8º Batalhão de Caçadores, subornou a guarda e, com meia centena de soldados, apossou-se da Capital (praticamente desguarnecida pelos farrapos) e libertou o secretariado preso num navio no Guaíba. A Monarquia se reinstalou.
Bento Gonçalves retorna do campo e sitia a cidade durante 1.285 dias, até 1840, mas sem poder reconquistá-la jamais.
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A corrupção impediu que a cidade fosse republicana. Ou "farroupilha", pejorativo que os atrasados conservadores davam aos avançados da época, que tinham olhos para os que vestiam farrapos. Em nome de Pedro II (então uma criança de menos de 10 anos), o regente do Império, padre Diogo Feijó, que governava o Brasil, outorgou à cidade o título de "mui leal e valerosa".
E a Capital passou a orgulhar-se de ser leal às estripulias do Império que os gaúchos combateram na guerra de 10 anos, que matou 45 mil pessoas. O título não honra a causa da qual nos orgulhamos. Ao contrário, é o seu oposto em termos históricos e éticos. Os imperiais foram "valerosos" militarmente ao resistirem ao cerco de três anos e meio que Bento Gonçalves impôs do seu quartel em Tarumã. Mas o suborno da guarda foi o ardil que, já no século 19, fez da corrupção um instrumento de poder.
Passam os anos, o poder se burocratiza e o suborno se expande como meio de chegar à meta. Parece até que, nesses 180 anos, o "herói" a homenagear seja o corruptor tenente Moysé, e não os comandantes da República Rio-Grandense que lutavam em nome da "liberdade, igualdade e humanidade".
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O suborno da guarda, porém, pode interpretar-se como tática de guerra - pois na guerra "tudo se permite", até o horror.
Além disso, no século 19 valiam os ideais. Império e República eram antagonistas, não se misturavam. Após o golpe de Estado de 1964 e dos 21 anos de simulação "democrática" da ditadura direitista, tudo se confunde e se mistura. O exercício da política virou feijoada com orelha, rabo de porco e demais restos da cozinha (como serviam aos negros escravos), com muito sal para acentuar o sabor. Assim, disfarça-se o arroto e o toque indigesto. E repetimos o prato a cada eleição.
Vivemos hoje em liberdade, mas a ética sumiu da política e da vida social desde 1º de abril de 1964. Gradativamente, a cobiça torna-se deus único. Senadores, deputados, ministros, governadores (como o "ex" de Mato Grosso, agora) aparecem como réus ou indiciados à Justiça, junto a empresários e banqueiros. O positivo é que, pela primeira vez, essa gente está presa, mas isto não basta para destruir o conluio do público com o privado.
O medo e a inércia continuam. Em 1965, na ditadura, castraram até o Hino Rio-Grandense. Retiraram o trecho "para assombro dos tiranos/ sejamos gregos na glória/ e na virtude romanos". Já não há tiranos, mas a inércia simula governar, como o governador Sartori.
E as façanhas de 1835 não servem de modelo sequer para restabelecer o hino.
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