Em 14 de abril de 2016, a então presidente Dilma Rousseff sancionava o uso da chamada pílula do câncer. Desde então, o uso da substância segue gerando polêmica. De um lado, pacientes que testaram e sustentam que faz efeito.
“A Manueli tinha muita dor. Ela usava Tramadol, Lidocaína e Morfina para a dor. Ela não caminhava, perdeu totalmente a visão. Com 15 dias de uso [da pílula] ela começou a andar. A audição que ela havia perdido, boa parte voltou. Ela não fez mais uso de analgésicos. Ela não sente mais dor”, diz a irmã de Manueli, Gabriela Fonseca.
De outro, a comunidade cientifica que questiona algo que sequer há comprovação de sua eficácia.
“Na realidade essa substância não pode ser facilmente promovida nem a medicamento e nem à pílula do câncer”, sustenta o oncologista do Hospital do Câncer Mãe de Deus Sérgio Jobim de Azevedo.
No dia 25 de julho, os testes clínicos começaram a ser feitos pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). Na fase inicial, dez pacientes com tipos variados da doença estão usando a substância. Em seguida, outros doentes vão usar a pílula. O insumo para produção das cápsulas está sendo produzido para pesquisas clínicas pelo laboratório PDTPharma, em Cravinhos, interior de São Paulo.
A ORIGEM
A fosfoetanolamina sintética começou a ser estudada no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, pelo pesquisador Gilberto Chierice. Em entrevista à Rádio Gaúcha, o químico disse que os testes só estão ocorrendo pela pressão dos pacientes que não estavam conseguindo mais as cápsulas.
"Essa lei só foi aprovada graças às pessoas que sofrem desse mal e que não estavam conseguindo receber o medicamento. Eu vibro, mas por eles. Essa responsabilidade, esse esforço todo foi de pacientes que têm câncer".
Gilberto lembra que a pílula do câncer não é um remédio, mas uma substância, já que ainda não passou pelos testes exigidos por lei. Relata o papel da fosfoetanolamina no combate ao câncer.
"Ela tem mais de 15 mil trabalhos na literatura internacional, cujo montante de 1.200 só se trata de câncer. É uma substância que em contato com o organismo humano passa do trato digestivo pro sanguíneo e caminha para as células neoplásicas".
O pesquisador aposentado fica exaltado quando perguntado se a pílula foi testada em humanos. Garante que a pesquisa começou dentro do Hospital do Câncer Amaral de Carvalho, em Jaú, interior de São Paulo, autorizada pelo Ministério da Saúde.
"Que foi em 95, quando não existia a Anvisa. O que se procura hoje é ocultar esses dados. E esses dados quem deveria ter cobrado é o Ministério da Saúde. Porque esse convênio foi firmado entre o Ministério e o hospital para fabricar o medicamento e fornecer ao hospital".
PACIENTES
Manueli Pereira tem nove anos e usa a fosfoetanolamina sintética desde 7 de dezembro de 2015. Moradora de Canoas, a pequena ex-modelo fotográfica está com um tipo raro de câncer no cérebro. Pouco depois do diagnóstico perdeu a visão, a audição e praticamente não caminhava. Segundo a irmã Gabriela Fonseca, já havia uma espécie de sentença de morte.
“Em novembro eu comecei a pesquisar tratamentos alternativos para a Manueli, pois os médicos deram seis meses de vida para ela. E com os tratamentos tradicionais com quimioterapia, radioterapia não haveria cura, apenas uma prolongação de vida de seis meses”.
Gabriela diz que foi aí que passou a procurar informações sobre a fosfoetanolamina sintética. Ingressou com ação e obteve liminar liberando grande quantidade. Afirma que a melhora da irmã após 15 dias foi considerável.
“A Manueli tinha muita dor. Ela usava Tramadol, Lidocaína e Morfina para a dor. Ela não caminhava, ela perdeu totalmente a visão. Com 15 dias de uso ela começou a andar. A audição que ela havia perdido, boa parte voltou. Ela não fez mais uso de analgésicos. Ela não sente mais dor”.
A visão de Manueli está voltando aos poucos, segundo a irmã. A pequena toma duas cápsulas por dia. Ninguém receitou. Gabriela é que decidiu pela quantidade, após pesquisar junto a alguns grupos de usuários da substância.
“Ela não parou de fazer o uso do quimioterápico. Ela faz o tratamento convencional ainda. A fosfoetanolamina não pede que os pacientes parem com o tratamento. É um a mais que aumenta a qualidade de vida”
Gabriela afirma que o tratamento com a substância para Manueli será de 12 a 14 meses, devido ao grau agressivo do tumor. Mas admite que já está preocupada, porque a produção foi interrompida.
“O grande problema é que a gente tem tratamento para dois meses ainda. Temos 120 capsulas. As liminares estão trancadas. Não estão concedendo mais liminares, não tem produção”.
O laboratório da USP parou a produção após uma determinação do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, em 6 de abril deste ano. A decisão foi dada no julgamento de ação proposta pela Universidade de São Paulo (USP), que contestou na Corte uma determinação do Tribunal de Justiça de São Paulo obrigando a instituição de ensino, sob pena de multa, a manter a distribuição da substância. A fosfoetanolamina vinha sendo distribuída por mais de duas décadas, informalmente, por pesquisadores da USP.
Gabriela desabafa ao lembrar do quadro da irmã e admite que o oncologista dela não foi comunicado do uso.
“Minha irmã já tinha uma sentença de morte. A ‘quimio’ também não ia curar ela. Então eu fui atrás de outro tratamento. Com a melhora da Manueli, eles não sabem explicar a melhora dela. Mas eu nunca disse para o oncologista que ela estava tomando fosfoetanolamina”.
Se Manueli e outros pacientes com câncer são adeptos aos tratamentos alternativos, há quem nem pense em fazer o mesmo. Jussara Del Moral, de 52 anos, tem câncer de mama há cerca dez anos. Moradora de São Paulo, faz tratamento com quimioterapia oral e hormônio-terapia. Conta que nunca fez tratamentos alternativos.
“Eu nunca procurei tratamentos alternativos de ingerir qualquer coisa. Eu posso fazer um tratamento espiritual e só. Coisas de ingerir eu tomo muito cuidado, porque como eu faço um tratamento com remédios, qualquer coisa pode dar interação”.
Jussara acompanha as discussões sobre a fosfoetanolamina, mas não pretende usar antes de uma garantia.
“É uma substância ainda, que só foi testada em ratos. Então eu acho que tem muito um envolvimento emocional das pessoas que quere acreditar na cura de qualquer maneira. Ninguém mais do que eu gostaria de acreditar nisso, mas a gente não pode jogar uma comunidade científica no lixo, né”.
A funcionária pública aposentada prefere não arriscar.
“Eu não tive nada que me convencesse que ela teria curado alguém. Eu não vou tomar uma coisa que colocar em risco o tratamento que eu estou fazendo ou parar um tratamento que eu estou fazendo e morrer para testar uma coisa que não foi testada em humanos ainda, só em ratinhos”.
Jussara criou um canal no YouTube para contar a sua batalha contra o câncer. É só digitar “supervivente” para conferir.
Celito Muller lutou com todas as forças contra o câncer durante mais de um ano. Morador de Ivoti, fez o tratamento convencional e também usou a pílula do câncer. Ganhou na Justiça o direito de receber 120 cápsulas. O filho Alan Muller conta que o pai parou de usar por conta da suspensão na distribuição. Coincidência ou não, o senhor Celito acabou morrendo aos 65 anos.
“Com certeza tinham pessoas com melhoras incríveis. Infelizmente com o pai atrasou. Com ele, infelizmente, não fez tanto efeito por questão de estar muito agressivo este câncer e por ele não ter mais ganhado”.
Alan torce pelos estudos. Já que não foi possível para o seu pai, então que melhore a vida de outros doentes.
“Que sejam promissores esses estudos. Que salvem vidas. Meu pai tinha 65 anos e aproveitou a vida dele de certo modo. Mas tem crianças aí que a gente vê que também estão morrendo, sabe”.
Rodrigo Gomes foi o advogado que ingressou com a ação judicial para obter a fosfoetanolamina a Celito. Disse que descobriu a substância ao buscar na internet tratamentos alternativos para combater o tumor no cérebro do próprio pai.
“Então eu comecei a fazer essas ações para as pessoas que precisavam no Brasil inteiro. Tem pessoas de fora do país que buscavam acesso à substância, né”.
Para o advogado, o pai apresentou melhora com o uso da substância.
“Ele estava paralisando o lado esquerdo do corpo. A própria visão que não enxergava muito bem. Então ele começou a tomar e começou a ganhar os movimentos novamente e a enxergar novamente”.
MÉDICOS
Sérgio Jobim de Azevedo é oncologista e hematologista do Hospital do Câncer Mãe de Deus e professor da Faculdade de Medicina da UFRGS. “Na realidade essa substância não pode ser facilmente promovida nem a medicamento e nem à pílula do câncer”, diz.
Para o médico, os pacientes com câncer, principalmente os que estão em estágios mais avançados, tendem a acreditar em substâncias milagrosas.
“ Ela não tem um perfil de segurança conhecido. Nós não sabemos que estragos isso faz. Nós não sabemos os critérios de absorção disso, quanto tem que ser administrado para estar na circulação e certamente nós não sabemos se isso gera ou não em células que contenham câncer”.
O oncologista reforça a necessidade da pesquisa para uso.
“Tem um pensamento mágico fruto de algumas experiências que algumas pessoas atribuem à essa substância, que já teve em relação à babosa, a cartilagem de tubarão. Várias coisas no passado já tiveram esse rótulo, talvez menos politizado do que agora, e que não vingaram como capacidade terapêutica efetiva contra o câncer”.
Azevedo não receita a substância porque não possui eficácia comprovada, mas admite mudar de opinião em caso de comprovação futura.
“Nós temos que imaginar que esse processo de pegar uma substância química e colocar num cenário clínico demora de cinco a dez anos. Acho pouco provável que a gente consiga abreviar isso com segurança num período menor que dois a três anos”.
O presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul, Rogério de Aguiar, afirma que o CREMERS acompanha a posição do Conselho Federal de Medicina que recomenda aos médicos não receitarem a chamada pílula do câncer.
“Porque é uma droga que não cumpriu minimamente as várias etapas que são exigidas pela própria legislação brasileira para realmente autorizar a oferta de uma droga no mercado para que as pessoas utilizem”.
Rogério de Aguiar lembra dos riscos da utilização da substância.
“Uma droga pode fazer mal, sim. A gente sabe que uma simples Aspirina que todo mundo usa, é uma droga que não é inócua. Ela tem efeito sobre o organismo que algumas pessoas não poderão usar”.
Apesar da recomendação do Conselho Federal de Medicina, o dirigente admite que os profissionais que receitarem a fosfoetanolamina sintética não poderão ser punidos.
“Como o Conselho Federal por definição tem que ser legalista, esse médico está dentro da lei. Se ele prescrever, ele está dentro da lei e não tem falta ética”.
Roberto de Almeida Gil é oncologista do Instituto Nacional do Câncer e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. Conta que ao longo da sua carreira se deparou com tratamentos chamados alternativos contra o câncer, que acabaram não se mostrando eficazes. Admite que vindo de uma universidade tão importante quanto à USP, ganha credibilidade. Mas para ele, ganhou uma dimensão muito maior do que deveria.
“A partir daí, evidentemente, sempre vão existir relatos de pessoas que se beneficiam de ‘n’ tratamentos alternativos, mas isso é sem comprovação científica. O grande problema é que isso é sancionado pelo governo como medicação para tratamento do câncer, contrariando tudo aquilo que a gente apreendeu ao longo dos anos como metodologia científica”.
O oncologista revela que possui pacientes em estado terminal que decidiram usar por conta própria.
“Inclusive a primeira paciente que ganhou a liminar no Supremo era minha paciente. Tomou a medicação e a doença dela, infelizmente, teve o desenvolvimento fatal que ela teria de qualquer maneira. A doença seguiu o curso natural”.
Segundo ele, não há como avaliar se os seus pacientes que usaram a pílula melhoraram ou pioraram.
“Os pacientes que utilizaram, eu confesso que nenhum deles eu vi efeitos colaterais importantes, mas também nenhum deles eu percebi algo diferente do que o efeito placebo que qualquer medicamento pode ter. Eu não tive nenhum paciente com efetivo benefício com a medicação”.
Auro Del Giglio é chefe do Departamento de Oncologia Clínica do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer. Afirma que a “fosfo” não é uma substância pronta para uso de forma indiscriminada.
“O processo de aprovação dessa droga foi atropelado. Não se imagina que o congresso possa opinar ou não sobre o uso de um remédio. Isso é um procedimento científico que tem que passar por uma série de etapas antes da liberação para uso comercial”.
Para o médico, há medicamentos muito mais importantes e testados que ainda aguardam na fila para liberação.
“Veja que absurdo. Aprova-se algo que não se sabe nada e existem vários remédios importantes que são usados no mundo inteiro e que ainda não foram aprovados no Brasil que nós não podemos usar”.
Luciana Holtz é psico-oncologista e presidente do Instituto Oncoguia. A ONG orienta, informa e defende os direitos dos pacientes com câncer. São diversos canais para quem precisa de ajuda, entre eles, o 0800-7731666, que é um programa de apoio por telefone. Conta que a procura por informação sobre a fosfoetanolamina é grande.
“Porque eu acho que é um assunto que ainda gera muita dúvida também para os pacientes. Tem um lado de muita esperança, muita angustia de querer ter a possível salvação”.
Desde os primeiros contatos, a orientação é a mesma.
“Por não existirem dados ainda que comprovem a segurança, a eficácia e a efetividade dessa substância, a gente não recomenda o uso”.
Luciana lembra de um caso de uma paciente que ligou para pedir informações sobre aposentadoria por invalidez e admitiu que estava usando a pílula.
“Quando a gente estava fazendo o cadastro dela, para nossa surpresa, as meninas perguntaram quais são os tratamentos que a senhora está fazendo e ela falou com a maior naturalidade que estava fazendo fosfo (fiosfoetanolamina), estava fazendo a ‘quimio’. Uma salada mista. Essa estava fazendo um pouquinho de tudo”.
Para Luciana, os órgãos públicos deveriam informar melhor as etapas para que um medicamento chegue nas farmácias.
“As pessoas não sabem que em algumas situações, tem 20 anos de estudos para traz. E que esses estudos existem para fazer uma bula. E que essa bula serve para saber o que aquilo pode fazer para a gente de bem, de mal”.
O maior desejo de quem usa ou usava a pílula do câncer é que as pesquisas sejam concluídas o mais rápido possível. Seja para desistirem da substância ou para voltarem a usá-la.