Por mais que seja um clichê, é preciso reconhecer que o tango, mais do que trilha sonora, é a alma da Argentina. Em geral, são canções que misturam paixão e melancolia, tristeza e revolta, esperança e desencanto. Palavras que podem, perfeitamente, se encaixar na eleição deste domingo (19), quando 35 milhões de argentinos irão às urnas para escolher o próximo presidente. Disputam o segundo turno o atual ministro da Economia, Sergio Massa, da coligação Unión por la Patria, e o economista ultraliberal Javier Milei, de La Libertad Avanza.
Para retratar uma eleição tão singular, os subtítulos desta reportagem são títulos de tangos clássicos. Os textos foram pensados para ser lidos ouvindo Carlos Gardel, Javier Solis ou Astor Piazzolla.
"Por una cabeza" — decisão voto a voto
Por una cabeza de un noble potrillo Que justo en la raya, afloja al llegar.
GARDEL E LE PERA
As pesquisas na Argentina indicam que a carreira que se disputará nas urnas deste domingo deve ter resultado semelhante a uma corrida de cavalos em que a vitória se dá "por uma cabeça". No primeiro turno, a maioria dos institutos de pesquisa errou. Errou nas primárias, quando Javier Milei chegou em primeiro lugar, e no primeiro turno, vencido por Sergio Massa com uma vantagem de quase sete pontos.
Neste segundo turno, os institutos mais conhecidos indicam empate técnico, levando-se em conta a margem de erro — a maioria com leve vantagem para Milei, mas alguns com Massa à frente. Na Argentina, é proibida a divulgação de pesquisas na semana que antecede a eleição.
Atlas/Intel, o que mais próximo chegou do resultado no primeiro turno, apontou na última pesquisa, divulgada em 10 de novembro, a vitória de Milei com 52,1% das intenções de voto, contra 47,9% de Massa, descartando brancos, nulos e indecisos. Quando as intenções são medidas em votos totais, Milei tem 48,6%, contra 44,6% de Massa, enquanto 2,3% dizem não saber em quem votar e 4,4% se dividem entre as opções brancos e nulos.
Em outra pesquisa, realizada pela Celag (Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica), Massa apareceu na frente com 50,8% das intenções de voto, contra 49,2% de Milei. Essa foi a única projeção em que o ministro da Economia apareceu na frente.
A consultora Solmoirago mostra Milei com 52,02% ante 48,98% de Massa.
"Mi Buenos Aires querido" — um colégio eleitoral decisivo
Mi Buenos Aires, tierra florida Donde mi vida terminaré Bajo tu amparo no hay desengaño Vuelan los años, se olvida el dolor.
GARDEL E LE PERA
Na Província de Buenos Aires, Sergio Massa deu um baile em Javier Milei no primeiro turno, mas o que está em jogo são os votos da candidata Patricia Bullrich (Juntos por el cambio), aliada do ex-presidente Mauricio Macri. Massa fez 42,9% dos votos, Milei, 25,7% e Patricia, 24,1%.
Logo após o primeiro turno, Patricia e Macri declararam apoio a Milei, com o argumento de que era preciso acabar com a influência da família Kirchner na Argentina.
O apoio sem consulta aos aliados dividiu o grupo que estava com Patricia em três fatias: os que a acompanham no voto em Milei, os que preferem Massa e os que pregam o voto em branco ou abstenção, convencidos de que nenhum dos dois representa a mudança de que a Argentina necessita.
Para não dizer que a eleição será decidida em Buenos Aires, é preciso lembrar que há outro colégio eleitoral menor, mas que também será decisivo: Córdoba. Nessa província, o grande vencedor foi Milei, com 33,6%. Em segundo, ficou Juan Schiaretti (29%), que no país chegou em quarto lugar. Patricia Bullrich foi a terceira (22,6%), e Massa só conseguiu o quarto lugar, com 13,4% dosvotos.
Estão em jogo, portanto, os 665.717 votos de Schiaretti, os 519.252 de Patricia e, ainda, os 31.895 de Myriam Bregman, da Frente de Izquierda.
Milei fez questão de encerrar a campanha com um comício em Córdoba, na noite de quinta-feira, de olho no espólio de Schiaretti e Patricia.
"Sombras nada más" — uma economia esfacelada como herança
Pude ser feliz Y estoy en vida muriendo Y entre lágrimas viviendo El pasaje más horrendo De este drama sin final.
JOSÉ MARÍA CONTURSI
O candidato que conquistar o "sillón de Rivadavia" (como os argentinos chamam a cadeira presidencial) vai herdar um país com a economia em destroços. A inflação anualizada chegou a 142,7%, recorde desde que o país saiu da hiperinflação de mais de 3 mil por cento ao ano. Os economistas dizem que há uma inflação represada de mais de 30% (pelo controle de preços) que terá de ser administrada pelo vencedor.
O PIB argentino deve fechar 2023 com queda de aproximadamente 3%, as reservas cambiais estão em um dos patamares mais baixos da história (US$ 21,4 bilhões em setembro, quando o Brasil tinha US$ 309 bilhões). Por causa da crise e da falta de dólares, a moeda argentina, o peso, derreteu. Há diferentes cotações para exportações, turismo e até mesmo o paralelo tem um valor "oficial". Na semana do primeiro turno, era possível trocar 1 dólar por mais de mil pesos no paralelo.
Com 40,1% da população vivendo na pobreza (9,3% em situação de indigência), a Argentina tem no desemprego um dos poucos dados a comemorar. O índice é de 6,2%, bem menor do que o do Brasil. A dívida externa somava US$ 276,2 bilhões no segundo trimestre deste ano, sendo US$ 44 bilhões para o Fundo Monetário Internacional.
"Caminito" — o turismo que sobrevive à crise
Caminito que el tiempo ha borrado Que juntos un día nos viste pasar He venido por última vez He venido a contarte mi mal.
GABINO C. PEÑALOZA
Qual é a imagem mais usada pelas agências de viagens quando se trata de vender pacotes para a Argentina? Sem dúvida, a do Caminito, a colorida rua museu, que conta a história dos imigrantes que se amontoavam nos cortiços chamados de "coventillos", casas precárias remendadas com folhas de zinco e pintadas com as sobras de tintas usadas nos navios. É nesse pequeno trecho do bairro de La Boca que hordas de turistas desembarcam todos os dias para assistir a shows de tango e tirar fotos para o Instagram.
Com a moeda desvalorizada, a indústria do turismo é uma das poucas que não se abalou pela crise. Todos os dias, milhares de turistas circulam pelas principais atrações de Buenos Aires e ajudam a preservar empregos.
Os restaurantes mais famosos estão sempre cheios. No Parrilla Don Julio, em Palermo, considerado o melhor restaurante de carnes do mundo, as reservas para o jantar têm de ser feitas com mais ou menos dois meses de antecedência. Até o final de 2023, é praticamente impossível conseguir uma mesa.
A oferta de restaurantes é ampla e os preços da comida e do vinho são convidativos para os turistas com dólares na carteira. As casas de tango seguem lotadas, os teatros da Calle Corrientes têm apresentações quase todas as noites, não é fácil conseguir ingressos de última hora para o mítico Colón e artistas internacionais mantêm a capital argentina no seu roteiro.
O turismo também é uma atividade em alta nas cidades do interior e não apenas em Bariloche, no inverno. Mendoza, província conhecida pela excelência dos vinhos, está entre os destinos mais procurados. Um dos indicadores dessa ebulição é fornecido pela Marcopolo, tradicional empresa de Caxias do Sul, que tem uma fábrica de ônibus em Rosário, na Argentina. As vendas do G8 (espécie de Ferrari dos ônibus) só não estão melhores pela escassez de dólares. Interessados não faltam.
"Adiós Pampa mía" — o desafio de reter talentos
!Adiós, pampa mía! Me voy, me voy a tierras extrañas Adiós, caminos que he recorrido.
IVO PELAY
Na Argentina, como no Brasil, há uma preocupação com a fuga de cérebros para outros países. Os jovens mais brilhantes, que não veem perspectiva de emprego em um país dilacerado pela crise econômica, não hesitam em migrar para a Europa, os Estados Unidos e o Canadá. Vem daí a piada de que que existe uma saída fácil para a crise econômica: o Aeroporto Internacional de Ezeiza.
Como cerca de 40% da população argentina descende de italianos, parte dos jovens consegue ter acesso a empregos na Europa graças ao passaporte bordô da dupla cidadania. Os descendentes de espanhóis, que formam outro contingente considerável da população, não têm a mesma facilidade para obter cidadania, mas formam filas no consultado da Espanha em busca de vistos de trabalho.
Como a Argentina tem uma tradição de boa educação básica e de ensino superior de qualidade, egressos das universidades também são bem aceitos no Canadá, sobretudo os graduados nas áreas de saúde ou de tecnologia.
Esse tema foi levantado pelo candidato Sergio Massa no último debate, quando anunciou planos para reter esses talentos em solo argentino e reafirmou seu compromisso com a educação pública. No primeiro turno, Milei defendeu a privatização da educação, com a compra de vouchers nas escolas particulares, mas recuou no segundo turno e prometeu manter públicas a saúde e a educação.
"Cuesta abajo" — a perda de força da dinastia Kirchner
Ahora, cuesta abajo en mi rodada Las ilusiones pasadas, yo no las puedo arrancar Sueño con el pasado que añoro El tiempo viejo que lloro y que nunca volverá.
GARDEL E LE PERA
Faz 20 anos, a letra K foi gravada a ferro e fogo na política argentina. Em uma eleição atípica (e qual não é na terra de Jorge Luis Borges?), um candidato improvável chegou à Casa Rosada. Néstor Kirchner, o homem sem carisma que veio do frio da Patagônia, parecia um coadjuvante ao lado da mulher, Cristina Kirchner, a senadora que parecia mais preparada do que ele para o exercício do poder.
Kirchner chegou ao segundo turno em segundo lugar, numa disputa com o ex-presidente Carlos Menem, que tentava retornar à Casa Rosada. As pesquisas indicavam que Kirchner venceria, mas Menem abandonou a corrida às vésperas do segundo turno e o ex-governador de Santa Cruz ganhou a eleição por WO.
Como primeira-dama, Cristina nunca foi a sombra do marido. Era o que se poderia chamar de "cabeça do Casal K", como os dois se tornaram conhecidos.
Sem os impedimentos da lei brasileira, sucedeu Kirchner em 2007. Tornou-se ainda mais forte em 2010, como a Viúva K, e reelegeu-se em 2011. Estava instalada a dinastia K, com o filho Máximo tentando se credenciar para ser o próximo Kirchner da família. Mas o segundo mandato foi marcado pela crise e por denúncias de corrupção, abrindo caminho para a derrota do peronismo e a eleição de Mauricio Macri em 2015.
Quatro anos depois, Cristina voltou. Não como candidata a presidente, como era esperado, mas como vice de Alberto Fernández. Uma vice que, dizem os adversários, no início mandava mais do que o presidente e emplacou seus aliados nos principais ministérios.
O aprofundamento da crise jogou Cristina e Alberto Fernández "cuesta abajo". Na campanha deste ano, o candidato do governo, Sergio Massa, faz malabarismos para se descolar da figura dos dois. Chegou ao segundo turno mais pelo medo que os eleitores têm de Javier Milei do que por uma demonstração de força do peronismo. Os marqueteiros que deram o tom na campanha trataram de isolar Fernández e a família Kirchner, dada a impopularidade do presidente e de sua vice fora das hostes peronistas.
Na noite em que foram conhecidos os resultados do primeiro turno, Massa discursou em La Chacarita tendo a bandeira da Argentina ao fundo do palco. Chamou a esposa, os dois filhos, o vice Agustín Rossi e a família dele para ficarem a seu lado durante o discurso em que propôs um governo de união nacional e deu a entender que não haverá lugar para os Kirchner se ele for eleito.