Segundo maior parceiro comercial do Rio Grande do Sul, a Argentina elege o seu próximo presidente neste domingo (19), após uma campanha que dividiu o país. O peronista Sergio Massa, atual ministro da Economia, surpreendeu ao alcançar 37% dos votos no primeiro turno, em outubro. O oposicionista Javier Milei, que se define como um "anarcocapitalista", ficou em segundo, com 30%. Agora, os dois disputam os votos de milhões de argentinos que ficaram divididos entre os demais candidatos no mês passado.
Por mais que seja um clichê, é preciso reconhecer que o tango, mais do que trilha sonora, é a alma da Argentina. Em geral, são canções que misturam paixão e melancolia, tristeza e revolta, esperança e desencanto. Palavras que podem, perfeitamente, se encaixar na eleição deste domingo, quando 35 milhões de argentinos irão às urnas para escolher o próximo presidente. Saiba mais sobre os dois candidatos que tentam chegar à Casa Rosada:
"Balada para un loco" — Motosserra ultraliberal
Loco, loco, loco Como um acróbata demente saltaré, sobre el abismo de tu escote hasta sentir, que enlouqueci tu corazón de libertad, ya vas a ver.
PIAZZOLLA E FERRER
Surpresa nas eleições primárias que definiram os cinco candidatos que disputariam o primeiro turno, o economista e deputado Javier Milei, 52 anos, está acostumado a ser chamado de “loco” até pelos eleitores que votarão neste domingo. El Loco y su irrupción em la política argentina é o título da biografia do candidato, escrita por Juan Luís Gonzáles.
— Sabe qual é a diferença entre um gênio e um louco? O sucesso — costuma dizer Milei quando confrontado com a pecha de doido.
A imagem de excentricidade foi criada por ele nas redes sociais para se apresentar como o diferente, o anarcocapitalista que não tem medo de enfrentar a “casta”, o homem da motosserra que corta privilégios. O visual extravagante, com cabelos desgrenhados e suíças a la Carlos Menem, ajudou a compor a figura do libertário que caiu nas graças de 7,88 milhões de eleitores argentinos.
A imagem de “loco” se solidificou com a publicação da biografia de Milei, que contou ao biógrafo sobre sua relação particular com os cães. Solteiro, disse que "os filhos de quatro patas" são sua “verdadeira família”. Revelou que, por meio de uma médium, se aconselha o cachorro Conan, um mastim inglês. Os cinco cães de 100 quilos que o candidato tem hoje em seu apartamento seriam clones de Conan e foram batizados com nomes de economistas.
No último debate, o adversário Sergio Massa voltou a levantar dúvidas sobre a sanidade mental de Milei e renovou a proposta para que os dois se submetessem a um teste psicotécnico. Milei recusou, naturalmente, e Massa então revelou que ele foi estagiário do Banco Central argentino e teria sido afastado por problemas psicológicos.
A esses pormenores da vida privada juntam-se as propostas de campanha, que agradam ao eleitorado de direita mas assustaram os de centro, e explicam por que ele ficou em segundo lugar no primeiro turno, depois de vencer as primárias. Entre eles, a dolarização da economia, a extinção do Banco Central, a privatização da saúde e da educação, a liberação da venda de órgãos e o corte de subsídios.
Na campanha do segundo turno Milei manteve a promessa de dolarizar a economia e acabar como Banco Central, mas recuou em relação aos subsídios (que ajudam a mascarar a pobreza) e à privatização das escolas e do sistema de saúde. Mudou para não perder os eleitores de Patrícia Bullrich, candidata da direita moderada, que discordam dessa guinada radical. A motosserra desapareceu dos comerciais, mas o candidato segue defendendo cortes de incentivo à cultura, o que atraiu a ira dos amantes do cinema argentino. Ameaçou fechar o Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, que resistiu até à ditadura militar.
No encerramento da campanha, em Córdoba, o candidato exibiu a réplica gigante de uma nota de cem dólares, com sua efígie, e voltou a usar uma frase familiar aos brasileiros: pediu aos argentinos que votem com esperança e não com medo.
"Cambalache" — Peronismo camaleônico
Que el mundo fue y será una porquería, ya lo sé En el 510 y en 2000 también Que siempre há habido chorros, maquiavelos y estafa’os Contentos y amarga’os, valores y doblé.
ENRIQUE DISCÉPOLO
Vencedor do primeiro turno da eleição na Argentina, o ministro da Economia Sergio Tomás Massa é, em versão generosa, um camaleão. Para os adversários, é vira-casaca, “panqueque”, traidor, falso, oportunista, responsável pelo aprofundamento da crise econômica. Se é tudo isso, como então chegou à frente com mais de 1,7 milhão de votos sobre o segundo colocado? Porque do outro lado está Javier Milei, o candidato considerado um salto no escuro.
Aos 51 anos, ternos bem cortados, cabelo aparado e uma família de comercial de margarina (esposa e dois filhos), Massa se apresenta como a antítese de Milei e seu repertório de palavrões. Advogado, navega na campanha eleitoral como se fosse um marciano que não tem nada a ver com a crise econômica e com a inflação de 142%, mas é ninguém menos que o ministro da Economia de Alberto Fernández desde 2022. Massa não é um peronista-raiz, desses que veneram a figura de Evita e do general. Sua relação com os Kirchner lembra o fole do bandoneón, com o vaivém da aproximação e do afastamento. Ele ocupou cargos públicos no governo de Néstor e Cristina, mas também jogou no time do ex-presidente Mauricio Macri, que chegou a apresentá-lo em uma reunião em Madri como o futuro da política argentina. Hoje os dois são adversários ferrenhos.
Filho de imigrantes italianos, Massa é um político tradicional, que começou como líder estudantil em um partido ligado ao peronismo. Elegeu-se deputado provincial em Buenos Aires e, mais tarde, prefeito de Tigre. Foi chefe de Gabinete de Cristina e rompeu com ela em 2013, por uma série de divergências políticas, entre as quais a manipulação de dados de inflação na época.
Em 2019, reaproximou-se do kirchnerismo, quando a chapa Alberto Fernández e Cristina se elegeu para a presidência e vice-presidência da república. No mesmo ano, Sergio Massa foi eleito deputado federal e presidiu a Câmara dos Deputados até julho de 2022, um mês antes de assumir o Ministério da Economia.
É verdade que assumiu o ministério com a crise em andamento, mas não conseguiu domá-la. Para todos os efeitos, a responsabilidade é do presidente Fernández, que nem ousou concorrer à reeleição e abriu caminho para Massa ser candidato e, contrariando as pesquisas, chegar em primeiro lugar no primeiro turno.
Um cambalache ou um truque de ilusionismo? Talvez seja mais preciso dizer que é fruto de dois fenômenos que, como seu nome e do adversário, começam com a letra M: medo e marketing. Sua campanha no primeiro e no segundo turnos é focada na desconstrução do adversário. Massa se apresenta como fiador da democracia e contrapõe a imagem de serenidade aos arroubos do adversário.