Criada sobre os escombros da 2ª Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) passa por um dos momentos mais delicados de seus 78 anos de história. O sucessivo descumprimento de parte de suas resoluções, a dificuldade de impor ações humanitárias e de evitar a escalada de conflitos detonaram um debate sobre sua capacidade de salvar vidas de civis e a necessidade de reformar a entidade global.
Um dos focos da controvérsia é o modelo do Conselho de Segurança, pelo qual um grupo de apenas cinco nações — equivalente a 2,5% dos países associados — conta com cadeira cativa e um poder de veto que dificulta a adoção de medidas contrárias a interesses das grandes potências.
Ao longo de uma década, o número de confrontos envolvendo Estados nacionais cresceu 70% e chegou a 56 em todo o mundo no ano passado, de acordo com um levantamento do Programa de Dados de Conflitos da Universidade de Uppsala, da Suécia. A maioria é formada por pequenas batalhas, mas havia pelo menos oito eventos classificados como guerras (com mais de mil mortes em um ano) contabilizados em locais como Ucrânia, Etiópia, Síria e Iêmen. As agressões entre Israel e Hamas agora se somam a essa lista sangrenta.
A ONU foi criada em 1945 justamente porque sua antecessora, a Liga das Nações, se mostrara incapaz de conter as animosidades que resultaram na 2ª Guerra. Um pequeno grupo dos países vencedores, composto por EUA, Rússia, França, China e Reino Unido, reservou para si cadeiras permanentes com direito a veto no chamado Conselho de Segurança — organismo dedicado a mediar e resolver conflitos internacionais. Na quarta-feira (18), apesar do apoio de outros 11 países à proposta brasileira de se criar um corredor de ajuda humanitária em Gaza, os Estados Unidos utilizaram esse poder de veto para barrar a resolução.
— Quando se pergunta se o atual modelo do Conselho de Segurança é adequado, é preciso perguntar: para quem? Certamente é adequado para os países (com assento permanente) que concentram poder, conseguem pautar a agenda internacional e impedir que alguma ação coletiva internacional vá contra seus interesses — afirma o pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Leonardo Paz.
A crise institucional se intensificou no ano passado, quando a Rússia invadiu a Ucrânia sem o aval da ONU e, para piorar, enquanto ocupava a presidência do conselho. Utilizou seu poder de veto para frear uma resolução que condenava sua própria ação militar apesar do voto favorável de 11 países e da abstenção de outros três (China, Índia e Emirados Árabes). Quando invadiram o Iraque e o Afeganistão, os rivais americanos também agiram à revelia do clube de países.
— Historicamente, a ONU cumpre uma função política específica de legitimar ações dos grandes poderes frente ao público internacional. A grande questão é que estamos em 2023 e se percebe, cada vez mais, que a ONU só funciona em casos muito específicos e quando interesses especialmente dos Estados Unidos e seus aliados, ou da Rússia, não estão em jogo — analisa a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Silvia Regina Ferabolli.
Especialistas veem pouca chance de reforma no curto prazo
Defendida por países como o Brasil e uma parcela de especialistas em relações internacionais, uma reforma significativa da ONU é considerada pouco provável em um horizonte próximo.
— Reformar a ONU seria uma alternativa dentro de um preceito mais ideal, mas acredito que seja pouco factível diante da situação atual. Mesmo que haja outros poderes que rivalizam com os países mais poderosos, a ONU foi forjada em um momento em que o centro econômico e político estava no Atlântico Norte. Depois da crise econômica de 2008, temos um deslocamento cada vez maior para o sudeste asiático, mas, mesmo que exista mais espaço político para questionar a estrutura da ONU e pleitear uma reformulaçao, a história mostra que esses movimentos tendem a ser muito lentos e com pouca efetividade — opina o professor de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) Daniel da Cunda Correa da Silva.
Leonardo Paz, da FGV, é mais cético em relação ao sucesso de uma eventual reformulação:
— Minha dúvida é se existe um modelo adequado. O Brasil acha que parte do problema é o Conselho de Segurança ter poucos membros. Mas um número maior de integrantes com poder de veto engessaria ainda mais as ações. Não sei se algum modelo seria capaz de frear o ímpeto das grandes potências.
Uma das possibilidades seria mexer justamente no poder de veto, algo que também enfrentaria resistência de quem hoje detém essa prerrogativa.
Paz lembra ainda que a organização não deve ser avaliada apenas pela capacidade de prevenir guerras, já que a mediação de contendas entre países é uma das funções principais da ONU, mas não a única. A organização conta com dezenas de programas, comissões e departamentos com atribuições tão distintas como evitar crimes e abuso de drogas, promover direitos humanos, combater a fome e garantir condições justas de disputa comercial, entre muitas outras áreas.
Por essa razão, Silvia Regina Ferabolli entende que o debate deve se concentrar na formatação do conselho, e não na existência da organização internacional como um todo.
— Uma coisa é a ONU, outra é o Conselho de Segurança, que realmente talvez esteja ultrapassado. Essa instituição dentro da ONU é que tem de ser repensada. A ONU é muito mais do que o conselho, e não precisamos jogar o nenê fora junto com a água suja — entende Silvia.
A ESTRUTURA DA ONU
Órgãos principais
- Assembleia geral
Principal órgão deliberativo das Nações Unidas, com representantes de 193 países-membro, tem objetivo de definir as políticas da organização.
- Conselho de Segurança
Maior responsável pela manutenção da paz e da segurança internacionais. É composto por 15 membros: cinco permanentes (com direito a vetar propostas) e 10 temporários.
- Conselho Econômico e Social
Coordena políticas e recomendações relacionadas a questões econômicas, sociais e ambientais, além da implementação de metas de desenvolvimento acordadas internacionalmente.
- Secretariado
O secretário-geral é o principal funcionário administrativo da ONU. Nomeado pela Assembleia Geral, por recomendação do Conselho de Segurança, por um período renovável de cinco anos. Atualmente, é o português António Guterres.
- Tribunal Internacional de Justiça
Sua função é resolver, de acordo com o direito internacional, litígios jurídicos submetidos pelos Estados e emitir pareceres consultivos remetidas por órgãos e agências especializadas das Nações Unidas.
Agências especializadas
Entre outras entidades subsidiárias, ligadas aos órgãos principais da ONU, as Nações Unidas contam com 15 agências dedicadas a temas específicos
- Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)
- Organização Internacional da Aviação Civil (OACI)
- Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (IFAD)
- Organização Internacional do Trabalho (OIT)
- Fundo Monetário Internacional (FMI)
- União Internacional de Telecomunicações (UIT)
- Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO)
- Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNUDO)
- Organização Mundial do Turismo (OMT)
- União Postal Universal (UPU)
- Organização Mundial de Saúde (OMS)
- Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI)
- Organização Meteorológica Mundial (OMM)
- Banco Mundial
- Organização Marítima Internacional (OMI)
Outras entidades
A ONU conta ainda com uma série de programas, fundos e outras iniciativas como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Fundo Monetário Internacional (FMI), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids), ONU Mulheres, Organização Mundial do Comércio (OMC), entre outros.