Após 16 anos no poder com uma popularidade "inoxidável" e após uma sucessão mal planejada, Angela Merkel vai deixar o posto de chefe de Governo, o que provocará um grande vazio na Alemanha e no mundo, apesar de seu legado desigual.
Merkel, que igualou o recorde de longevidade na chancelaria de seu mentor Helmut Kohl, corre o risco de se aposentar da política com uma derrota histórica de seu partido conservador. As eleições para o Bundestag, que define o sucessor de Angela, ocorrem no dia 26 de setembro.
Depois de acreditarem durante muito tempo que a vitória estava garantida, os democrata-cristãos parecem punidos pelo desgaste de uma década e meia no poder.
Também sofrem com os erros de seu candidato — o desajeitado e impopular Armin Laschet — e com a negligência de Merkel no momento de passar o bastão.
Mobilizada em todas as frentes, tanto na Alemanha como no exterior, com diversas viagens de despedida, a chefe de Governo de 67 anos tentou ajustar o rumo do barco ao participar da campanha eleitoral ao lado de Laschet.
Segundo as pesquisas, o esforço não apresentou resultado até o momento. Merkel conserva, no entanto, uma popularidade que provoca inveja em muitos governantes de países ocidentais.
A situação de 2019 parece muito distante, quando a chanceler, à frente de uma grande coalizão de direita e esquerda, deu a impressão de estar pressionada pela mobilização dos jovens a favor do clima.
O "maior desafio"
Como símbolo do crepúsculo de seu governo, alguns tremores aparentemente incontroláveis afetaram Merkel durante cerimônias oficiais e provocaram dúvidas sobre a capacidade desta "quase infatigável" chanceler para concluir seu quarto e último mandato.
A pandemia de coronavírus chegou, e sua popularidade voltou a aumentar: 75% dos alemães se declaram satisfeitos com sua administração do país, conforme as pesquisas.
Durante a pandemia, inclusive, algumas pessoas pediram um quinto mandato, mas a primeira mulher a governar a Alemanha descartou a ideia de imediato.
Esta cientista (formada em Física, doutora em Química Quântica) fez uma gestão quase impecável da pandemia da covid-19 e soube se comunicar, de forma pedagógica e racional, para enfrentar — em suas palavras — o "maior desafio" do país desde a Segunda Guerra Mundial.
O confinamento, que a recordou de sua vida na ex-RDA (Alemanha Oriental, comunista), representou, para Merkel, "uma das decisões mais difíceis" em seus 16 anos de poder.
A Alemanha registrou uma situação menos dramática que grande parte de seus vizinhos europeus, apesar de uma segunda onda fatal de casos no outono (hemisfério norte, primavera no Brasil) de 2020.
A pandemia e suas dramáticas consequências econômicas e sociais também permitiram a "Mutti" ("mãe"), como ela é carinhosamente chamada por muitos alemães, adaptar-se à crise com uma mudança de paradigma.
Fervorosa defensora da austeridade europeia após a crise financeira de 2008 e apesar da asfixia das finanças da Grécia, Merkel estimulou o aumento dos gastos e a mutualização da dívida — a única coisa, segundo ela, que poderia salvar o projeto europeu.
Em 2011, a catástrofe nuclear de Fukushima (Japão) convenceu-a rapidamente a iniciar o processo de abandono progressivo da energia nuclear na Alemanha.
Decisões de risco
Sua aposta política mais ousada foi em 2015, quando abriu as portas do país para centenas de milhares de solicitantes de asilo sírios e iraquianos.
Apesar dos temores da opinião pública, a chanceler prometeu integrá-los e protegê-los.
— Vamos conseguir — declarou.
Esta talvez tenha sido uma de suas frases mais surpreendentes, pois Merkel é bastante relutante a discursos apaixonados.
Até então, a chefe de Governo, que usa o sobrenome de seu primeiro marido e não tem filhos, havia cultivado a imagem de mulher prudente e até fria, sem arestas, que adora batata, ópera e caminhadas.
Para explicar a decisão histórica sobre os migrantes, adotada sem consultar realmente os aliados europeus, ela invocou seus "valores cristãos" e uma certa obrigação de dar o exemplo em um país que carrega o estigma do Holocausto.
Esta caridade cristã de Angela Kasner, seu sobrenome de solteira, vem de seu pai, um pastor austero que decidiu voluntariamente viver com toda família na Alemanha Oriental comunista e ateia para pregar.
— Minha herança me marcou, especialmente o desejo de liberdade durante minha vida na RDA — disse ela no 30º aniversário da reunificação.
O medo do islã e dos atentados levou, porém, uma parte do eleitorado conservador a apoiar o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD). Em setembro de 2017, esta sigla conseguiu entrar no Parlamento, rompendo um tabu do Pós-Guerra.
"Líder do mundo livre"
Após o terremoto Donald Trump e o Brexit, Merkel, que sempre assumiu a decisão sobre os refugiados, foi elogiada pela imprensa e por muitos políticos como a "líder do mundo livre" diante da ascensão do populismo.
Em suas memórias, Barack Obama, um dos quatro presidentes americanos que Merkel conheceu desde 2005, descreve-a como uma governante "confiável, honesta, intelectualmente precisa" e uma "bela pessoa".
A "chanceler teflon", que parece imune aos problemas, é um animal político tão peculiar como temível, subestimada por muitos de seus adversários.
No ano 2000, após um escândalo financeiro em seu partido, ela assumiu o comando da CDU, superando toda hierarquia masculina.
Em 18 de setembro de 2005, derrotou o chanceler social-democrata Gerhard Schröder nas eleições por uma estreita margem. Depois da primeira vitória, conquistou mais três: em 2009, 2013 e 2017.
Em 20 de maio, Merkel afirmou que se aposentava da política com apenas uma ambição: que não se diga que ela foi "preguiçosa".