Por Roberto Rodolfo Georg Uebel
Docente na ESPM Porto Alegre e Senior Fellow do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia
No último domingo, uma Alemanha muito diferente daquela de 16 anos atrás foi às urnas para escolher a formação do seu novo Bundestag, o Parlamento. Os 60 milhões de eleitores aptos a votar, dos quais boa parte nasceu e cresceu em uma nação reunificada, com uma economia estável e que é o eixo de sustentação da União Europeia, depararam com diferentes opções para o seu país, até então governado pela chanceler Angela Merkel, uma das lideranças políticas mais importantes do mundo contemporâneo.
Com um sistema democrático robusto e consolidado, que é exemplo internacional, a Alemanha de Merkel viu os primeiros resultados, ainda na noite de domingo, apontarem para uma pulverização do seu eleitorado, o que garantiu o maior número de assentos do Parlamento na história, sendo o segundo maior do mundo, apenas atrás da China e seu regime de partido único. Em uma votação apertada, os sociais-democratas do SPD disputaram voto a voto com os democratas-cristãos conservadores da União CDU/CSU a coalizão de centro-direita que manteve Merkel no poder por quase duas décadas.
Outros dois partidos tiveram uma ascensão notável no pleito eleitoral, os Verdes e os liberais do FDP, e deverão formar uma provável coalizão com o SPD para o novo governo, cujo prazo para começar pode se arrastar por algumas semanas, até meses, tendo sempre como tradição o Natal – uma das principais datas comemorativas na Alemanha – como marco de referência.
Por outro lado, a esquerda e a extrema-direita, AfD, tiveram resultados piores do que as eleições anteriores e não serão convidados para a formação de um governo de coalizão, algo que é simbólico não apenas para a Alemanha, mas também para um mundo que busca cada vez mais alternativas que fujam de populismos, extremismos e velhas formas de governar.
O recado das urnas alemãs foi claro: o espaço para ideias e políticas retrógradas está diminuindo cada vez mais, dando lugar a ideias progressistas e concessões inclusive dos partidos tradicionais. Essa tendência se verificou também nas eleições parlamentares da semana anterior, no Canadá.
Com essa configuração política de pulverização dos votos – diferentemente da polarização, onde há apenas dois lados fundamentalmente antagônicos –, a Alemanha pós-Merkel encaminha-se para um governo que será liderado pelo social-democrata Olaf Scholz, atual vice-chanceler do país, ou pelo democrata-cristão Armin Laschet, governador da Renânia do Norte-Vestfália, cujos desafios serão atender às demandas de seu eleitorado, bem como as agendas dos verdes e dos liberais, em um país que recupera-se da pandemia de covid-19 após rigorosos – e necessários – lockdowns e que busca firmar-se como a potência central da União Europeia, contrastando com a França de Emmanuel Macron, que tentará sua difícil reeleição no ano que vem, em um momento de baixíssima popularidade.
Popularidade foi justamente a marca principal do governo de Angela Merkel, que se colocou como uma liderança ágil para combater incêndios políticos, a ascensão de movimentos nacionalistas e anti-integração, crises regionais e tensões globais, marca esta que elevou à Alemanha à condição de referência na diplomacia política, econômica e humanitária. Merkel soube responder com primazia aos principais desafios enfrentados pelo seu país e pela Europa nas últimas décadas: as crises do Euro, dos refugiados e da separação dolorosa com o Reino Unido, o Brexit, que está longe de acabar.
Além da superação de crises, a personalidade política de Merkel permitiu que a Alemanha se projetasse como um país do futuro: cidades conectadas e verdes, o fim de usinas nucleares e a adoção responsável de energias limpas, aliadas a uma sociedade instruída e altruísta, o que tornam o país referência e modelo não apenas para seus vizinhos europeus, mas também para o mundo, inclusive o Brasil, um de seus principais parceiros comerciais.
Angela Merkel entregará para seu sucessor uma Alemanha com projeção de crescimento de 3,3% em 2021 e 4,6% em 2022, invejável para os olhos brasileiros, uma economia estável e pujante e uma sociedade que anseia qualidade de vida, ideias progressistas e um papel altivo de seu país na comunidade internacional. Por essa razão, o novo chanceler deverá lidar com os avanços de Rússia e China na região, bem como a nova projeção geopolítica da França e um afastamento necessário dos Estados Unidos, a fim de garantir sua autonomia e estabilidade perenes. Merkel, afinal, deixou essa última marca como principal legado de seu governo.