Há uma década, os levantes árabes foram sobrecarregados por convocações virtuais de adesão aos protestos. Mas a internet logo foi inundada pela desinformação, enfraquecendo os ciberativistas da região. Quando o ditador tunisiano Zine El Abidine Ben Ali fugiu do país, em janeiro de 2011, rumores e incertezas criaram "pânico e histeria", disse a ex-ativista e empresária Houeida Anouar.
— O dia 14 de janeiro foi uma noite horrível, muito traumática. Ouvimos tiros e um vizinho gritou "escondam-se, eles estão estuprando mulheres" — disse ela.
Enquanto a imprensa pró-regime espalhava desinformação, a enxurrada de notícias falsas também se espalhava pela internet, um espaço que os ativistas viam há tempos como um refúgio da censura e da propaganda. O jornalista e pesquisador Hakim Beltifa diz que o terreno era propício para "a divulgação de notícias falsas".
"As notícias falsas alimentavam a desconfiança das pessoas (nos meios de comunicação estatais tradicionais) que obscureciam a realidade e mantinham as pessoas na ignorância", escreveu Beltifa para a revista virtual The Conversation.
Quando a TV estatal do Egito acusou a rede norte-americana de fast food Kentucky Fried Chicken (KFC) de oferecer refeições gratuitas a manifestantes pró-democracia na emblemática Praça Tahrir, no Cairo, os rumores se alastraram no mundo virtual, em meio a uma série de relatos de que potências estrangeiras supostamente tinham se infiltrado no levante.
Mas ativistas e jornalistas locais encontraram poucas evidências sobre a rede de restaurantes especializada em frangos fritos. A maioria dos manifestantes estava sobrevivendo com pão sírio e kushari, um prato popular e barato de rua com arroz, massa e lentilhas.
Usuários fantasmas
Logo, uma série de falsas narrativas originadas do meio virtual estavam minando a confiança nas fontes da internet. Um exemplo foi o caso da "Garota Gay de Damasco". Amina Abdallah Arraf era uma jovem lésbica sírio-americana, ativista anti-regime e autora de um página amplamente seguida por observadores do levante sírio.
A questão é que ela nunca existiu.
Quando houve a informação de que Amina havia sido "sequestrada" em Damasco, seus preocupados seguidores se mobilizaram para resgatá-la das mãos do regime de Assad. Porém, eles descobriram que a blogueira, que tinha sido um ícone do movimento pró-democracia da Síria, era na verdade Tom MacMaster — um norte-americano barbudo na casa dos 40 anos que mora na Escócia e esperava alcançar alguma fama literária.
— Isso parece bastante brando hoje, pois aprendemos a suspeitar mais desse tipo de informação, mas, na época, a suspeita era muito menos prevalente — explica o pesquisador Yves Gonzalez Quijano.
Outra personalidade inventada foi Liliane Khalil, uma suposta jornalista norte-americana que cobria a Primavera Árabe para vários meios de comunicação e que indiretamente expressou apoio ao governo do Bahrein. Apesar de uma grande quantidade de informações públicas sobre Khalil, que foi acusada por muitos ativistas e pesquisadores de ser uma farsa, sua verdadeira identidade nunca foi revelada.
Falta de confiança online
Os dois casos, com suas histórias com contextos cuidadosamente elaborados e imagens manipuladas, foram os primeiros exemplos do que logo se tornou a tendência da desinformação virtual. O pesquisador Romain Lecomte ressalta que os regimes logo foram capazes de "se infiltrar nas discussões" online, espalhar dúvidas sobre os abusos relatados e "espalhar confusão e desinformação" nas redes.
— O uso político da internet em massa mudou o jogo — explica Lecomte.
Muitos ativistas online começaram a questionar o poder democrático da internet. Isso gerou o fenômeno dos serviços de checagem de fatos, junto com dilemas sobre permitir que "notícias falsas" circulem ou sejam censuradas, o que poderia comprometer as liberdades democráticas.
Nos primeiros anos das revoltas árabes, salas de bate-papo e sites como o blog de Lina Ben Mhenni, "A Tunisian Girl", alimentaram crescentes movimentos de protesto e contenção da censura.
Mas a onda de desinformação tirou muito da credibilidade do ciberativismo, acrescenta Gonzalez Quijano. Isso "nunca deixou de ser usado, ou melhor, manipulado, por poderes políticos que são mais bem organizados do que os ativistas locais", finaliza.