Em fevereiro de 2019, em viagem aos Emirados Árabes Unidos, o Papa Francisco assinou conjuntamente com o grande imã de Al Aazhar, Ahmad Al-Tayyeb, uma histórica declaração de fraternidade, pedindo paz entre nações, religiões e raças. Um ano depois, com o mundo enfrentando a pandemia de covid-19, o sumo pontífice viveu uma reclusão inédita e, portanto, teve tempo para observar os rumos do mundo e refletir. É o resultado disso que se espera quanto ao conteúdo da terceira encíclica de Francisco, Fratelli Tutti, que deve ser publicada no início de outubro.
Como sempre em termos de Vaticano, tudo é carregado de simbolismo. A carta será divulgada no dia de São Francisco de Assis, de quem o cardeal argentino Jorge Bergoglio emprestou o nome quando se tornou papa. Fratelli Tutti, ou "todos irmãos", é trecho de citação atribuída ao santo. O papa, viajará até Assis no próximo dia 3, onde deve celebrar uma missa - com acesso restrito - e assinar a carta próximo ao túmulo de São Francisco. As expectativas, portanto, residem em um documento carregado da espiritualidade e do carisma franciscanos: fraternidade humana, tolerância entre todos, respeito à natureza.
Com o planeta aturdido pelo coronavírus, contudo, esse contexto deve estar presente no documento, apostam especialistas ouvidos pelo Estadão.
— Em várias ocasiões, o Papa Francisco tentou delinear como o mundo deve se repensar depois da pandemia e uma chave de leitura será a de um mundo mais fraterno — diz o vaticanista italiano Andrea Gagliarducci, do grupo ACI-EWTN. — A fraternidade será a chave da compreensão, o centro de um raciocínio que deve trazer a base de um mundo mais unido e mais próximo dos marginalizado.
O vaticanista acredita que a essência do texto assinado com o grande imã de Al Azhar deve estar na encíclica. E o papa incluirá expressões recorrentes de seus discursos sobre o mundo pós-pandêmico, como a gravidade do "vírus da desigualdade" e a necessidade da "globalização da solidariedade". E haverá referências franciscanas, como inspiração.
— Ele vai abordar a solidariedade tão urgente no mundo de hoje, pós-pandêmico — diz frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos do Brasil. — O modo como nós, franciscanos, entendemos a ecologia é muito forte no Papa Francisco. Mas a fraternidade também é algo central na espiritualidade franciscana. O papa caminha na esteira de São Francisco, inspirado por São Francisco.
Importância
Na hierarquia dos documentos católicos, a encíclica é a mais importante. Dirigida aos bispos do mundo todo - e, por conseguinte, aos fiéis de todas as dioceses -, traz o chamado magistério de um papa, ou seja, os pontos basilares de sua doutrina.
— Diferente de uma exortação apostólica, de uma carta pastoral, de um pronunciamento, de uma homilia ou de um tuíte, a encíclica, mesmo que não traga nada de novo sobre o tema, tem o peso de se tornar ensinamento oficial da Igreja — esclarece o vaticanista Filipe Domingues. — Trata-se de um documento que tem uma base teológica, é mais sólido e tem peso histórico.
É de se esperar a inclusão de ideias como a dita por Francisco naquela histórica celebração em que ele rezou solitário na Praça São Pedro, em 28 de março, sob chuva.
— Ele disse que "estamos todos no mesmo barco", "Jesus é quem nos guia nessa tempestade", "temos de nos unir para tratar desses problemas que são problemas da humanidade", recorda Domingues. — A mensagem é que não adianta a gente achar que com soluções locais vai ser possível responder a problemas globais - e a pandemia é só um deles.
Isolamento
O isolamento social de 2020 não foi fácil para ninguém. Mas, para o historiador italiano Alberto Melloni, a pandemia deve marcar o "começo do fim" do pontificado de Francisco. A frase é controversa. Mas o que vaticanistas concordam, contudo, é que o período solitário dentre os muros do Vaticano realmente mexeu com um papa conhecido por gostar de estar rodeado de pessoas.
— Não podemos saber se esta é a fase final do pontificado de Francisco. Mas, certamente, estamos em uma nova etapa, oriunda de uma circunstância: a pandemia que parou tudo, colocou o mundo em espera e portanto, também o pontificado — define o vaticanista italiano Andrea Gagliarducci.
— A pandemia obrigou uma "parada", foi um baque no pontificado de Francisco, que vinha num ritmo intenso até o Sínodo da Amazônia. Ele tinha viagens previstas para este ano e precisou suspender muita coisa — comenta Filipe Domingues. — Era de se esperar que, no meio disso tudo, ele dedicasse um tempo para escrever.
Já Domingues prefere cautela sobre dizer que seja a reta final do papado de Francisco.
— Historicamente, é verdade que muitos pontificados terminam depois de um susto - eles fazem com que o dinamismo diminua e haja uma decadência. Em geral, são homens idosos — analisa. — Alguns historiadores estão dizendo que a pandemia é o baque que Francisco está sofrendo. Ele é social, ativo, sai, quer encontrar as pessoas, e foi obrigado a ficar no escritório, preso no Vaticano, sozinho, isolado do povo e das pessoas que o informam sobre o que está ocorrendo do mundo.
Segundo tal ponto de vista, a gestão de Francisco entrará em um declínio.
— Eu não acredito nisso. Ainda não acho que é o golpe final dele. Acho que ainda tem muita coisa para oferecer — completa o vaticanista.
Para o Domingues, a nova encíclica pode novamente pautar sua voz pelo mundo. E, assim que condições tornarem a ser seguras, ele deve voltar a viajar.
— Claro, o papa não é jovem (fará 84 anos em dezembro), mas só Deus sabe se esta é a fase final — pontua Gagliarducci.