Por quase 90 dias, a rotina do gaúcho José Ivan Albuquerque Matias, 50 anos, foi assistir à TV e observar crianças brincando com fuzis AR-15 e pistolas. Sequestrados por guerrilheiros dissidentes das Farc, na Colômbia, o técnico de vendas Matias e seu companheiro, o banqueiro suíço Daniel Max Guggenheim, 67 anos, passaram por 11 cativeiros até serem resgatados pelo Exército colombiano, na quinta-feira (18). Ex-morador de rua e fundador de uma associação de catadores em Porto Alegre, Matias vive fora do Brasil há cerca de uma década. Já visitou 35 países, mora em Buenos Aires e, na Colômbia, foi capturado durante uma viagem de férias que duraria quatro meses. Na manhã de sábado (20), Matias e Daniel participaram de uma solenidade em que representantes do Exército fizeram um pedido de desculpas pelo ocorrido em nome da população da Colômbia e entregaram uma medalha ao casal. Neste domingo (21), os dois prestarão depoimento às autoridades colombianas. Desde o resgate, depois de passar por um hospital, o gaúcho e o suíço estão em um hotel em Bogotá sob forte esquema de segurança. Matias conta que o sequestro o fez mudar a visão de vida e que estuda abrir escolas no Brasil, a começar por sua terra natal, Carazinho. Ele também planeja escrever um livro contando a experiência. Abaixo, confira trechos da entrevista que Matias concedeu à GaúchaZH:
Como vocês foram capturados?
A gente estava numa cidade que tinha o toque de recolher (por causa da pandemia). Iria começar o toque de recolher no dia 20 de março, e as pessoas não poderiam sair. O GPS nos deu essa rota, só não avisou que era uma zona vermelha, zona proibida. Quando paramos para pedir informação, nos capturaram. Pensei que a gente ia morrer.
O que eles falaram para vocês?
Perguntaram o que estávamos fazendo ali, pois a região é só para quem tem permissão. Disseram que nós havíamos chegado ao cemitério, que a gente não iria sair vivo dali.
Vocês foram levados para onde?
Nos revistaram, nossas roupas, computadores. Voltamos para a caminhonete e já tinha um motorista deles na direção. Fomos para a beira de um rio. Lá, o Daniel conseguiu enviar mensagem para filha dele dizendo que estávamos sequestrados. Fomos para uma casa, o primeiro cativeiro, e fizeram a primeira proposta de resgate no sábado (21 de março). Inicialmente, eram 30 milhões de pesos colombianos, depois, 5 milhões de pesos e a última foi de 250 mil dólares.
O senhor ligou para sua família. Eles deixavam vocês ligarem do cativeiro?
Não, só podia ligar com permissão do comandante.
Como vocês foram tratados nos cativeiros?
Não nos trataram mal, não nos amarraram, tinha comida. Remédio, a gente tinha, mas eu ficava em pânico quando estava perto de terminar, nossos remédios são vendidos só com prescrição médica. Eles tinham de pedir com uma semana de antecedência, pois aí alguém do comando conseguiria em Cali. Eu tomo remédio para pressão alta e o Daniel, para arritmia do coração. Sempre que trocávamos de cativeiro, era de noite, de madrugada. Diziam que o Exército estava chegando, eles tinham informante no próprio Exército.
Por isso, na ligação, o senhor falou para sua irmã não procurar o Exército?
Sim, eles tinham informantes no Exército de Cauca. A gente era para ser resgatado quatro ou cinco dias depois, não era para ficar para tanto tempo. Mas, através desses informantes, eles mudavam a gente de cativeiro.
Eles ameaçavam vocês de morte ou queriam só o dinheiro?
Ameaçar de morte foi só uma vez quando a gente telefonou, se a gente mandasse a localização de onde a gente estava, iam nos matar.
O senhor falou para sua irmã que ficava com olhos vendados num lugar escuro.
A gente não ficava. Um deles pediu para a gente falar isso para a Daniela (irmã) ficar assustada e não chamar a polícia, o Exército.
Quantos guardas cuidavam de vocês?
No começo, ficavam quatro, dois de dia e dois de noite. Nos últimos tempos, eles tomaram uma certa confiança em nós, ficavam dois ou três. Na noite em que fomos resgatados, tinha só um e sem arma. Eles sempre estavam armados de fuzil AR-15.
Qual era a rotina de vocês no cativeiro, para passar o tempo?
Eu levei livros para estudar alemão, a gente iria ficar quatro meses de férias e eu ia aprender. Nas duas primeiras semanas, fiquei com os livros. Mas eles tiveram um aviso de um informante do Exército e nos tiraram tudo, relógio, pulseira, anéis, porque eles pensavam que as roupas poderiam ter chip para nos localizar. Em alguns cativeiros, tinha televisão, daí a gente assistia. Tinha hora para tomar sol, horário para banho - com água gelada.
Os guardas conversavam com vocês? Sobre o quê?
Só alguns, havia uma estratégia. Uns acalmavam. Outros, que achavam que a gente estava calmo, diziam que iriam ficar com a gente por meses e anos. E sempre aumentavam o valor do resgate. Os que tinham patente maior pouco falavam. Um que tinha codinome de "cunhado" passou a falar mais. Depois que eu caí, bati a cabeça e sangrou, eles resolveram chamar a Cruz Vermelha. Minha mãe recebeu aí em Porto Alegre o pedido de socorro que eu enviei.
Como foi esse pedido?
Por um formulário que buscaram na Cruz Vermelha. Alguém deles foi na Cruz Vermelha - acho que uma irmã dos sequestradores - foi buscar o formulário para a gente preencher. Tinha que falar da nossa situação, que a gente estava mal e precisava de remédio, para eles (os familiares) contatarem a Cruz Vermelha para nos resgatar de lá. Mas a Cruz Vermelha não entrega dinheiro. Quando a gente soube (que a Cruz Vermelha não lidava com dinheiro), voltou todo aquele pânico. A gente pensava que ia ficar lá.
Houve algum pagamento para os sequestradores?
A gente não sabe ainda. A cônsul da Suíça aqui pediu para a gente não falar de valores. Supostamente foi pago, mas não tenho certeza. As nossas famílias não pagaram nada.
Em uma conversa com sua irmã, o senhor pediu que ela lançasse uma campanha, falasse com políticos, com a imprensa gaúcha, para pegar um avião e ir até aí.
Foi pelo dia 7 de maio, porque os aeroportos estavam fechados, não podia chegar ninguém. Pensei que pudesse ter uma exceção entre os governos, do Brasil e o colombiano, que pudesse trazer o dinheiro e nos resgatar. Pedi ajuda dessa maneira. As polícias não aceitaram porque a gente estava correndo perigo. Esse grupo dissidente das Farc é um dos mais violentos.
Como foi o resgate, vocês estavam dormindo?
Por causa dos remédios eu estava meio tonto, e daí eu ouvi o helicóptero já em cima da casa. Falei para o Daniel "É o Exército". Nisso já invadiram o quarto. Eu fiquei paralisado, o soldado teve que me arrastar. Eu saí com a roupa do corpo. E dizia que tinha que pegar o cachorro, e ele foi me arrastando. Dizia que tínhamos que ir. Nós fomos para uma base no Vale do Cauca, tinha psicólogo, enfermeiro, nos deram soro e tiraram as fotos que rodaram o mundo. Depois, fomos para Bogotá. Estamos em um hotel do Exército.
Vocês estavam feridos?
Eu estava com muita dor de cabeça, e o Daniel estava com pé esquerdo machucado porque caiu durante esse resgate.
Vocês já têm previsão de retornar para casa?
Não. Estão tratando com o governo da Alemanha um voo que terá depois do dia 1º, quando terá algumas exceções para voos internacionais. A embaixada da Suíça está vendo com a embaixada da Alemanha.
O senhor foi morador de rua, catador, viajou 35 países e agora passou por essa experiência. Qual seu sentimento?
Vou ter um outro conceito de vida. As viagens vão diminuir. Não vou visitar mais países em que as pessoas não têm mínimas condições de vida. Quando fui para África, vi corrida de camelo. Os donos dos camelos com muito dinheiro e quem cuida do camelo e tirou 1º lugar, mora numa barraca sem banheiro, cama sem colchão. Fomos num lugar onde uma menina caminhava 30 quilômetros para conseguir água. Só quero viajar para fazer trabalho social. Sem hotel cinco estrelas.
Mudou sua visão de vida?
Mudou muito. Sempre quis ter um Rolex. Quando consegui, ficou com os sequestradores. Única coisa que vou fazer de novo são os anéis que fiz em homenagem dos meus avós. Mas relógio e sapato caro, não. Lembro que a primeira vez que fui a Suíça a minha família suíça tirou meu cartão porque eu fui numa camisaria e comprei 50 camisas de uma vez. Eu não tinha nada, era morador de rua.
O que fica de aprendizado, o que o senhor diria?
Quero dizer para as pessoas nunca deixarem de acreditar em Deus, nesses 90 dias, sempre acreditei. E que revejam a vida, não deixar de falar com pai e mãe por causa de discussão boba. A vida é mais importante que WhatsApp, Facebook. Vou pedir ajuda para embaixada da Suíça e a fundação da família do Daniel para fazer trabalho social. Quem sabe no Brasil eu faça um trabalho voltado para a educação. Construir uma escola em cada capital do Brasil e uma na minha cidade, Carazinho. Para não ver mais o que vi aqui, crianças, filhos dos sequestradores brincavam com fuzil, pistola (sem munição). Quero deixar mensagem para família e amigos, que rezaram por nós, e para a nação gremista (a bandeira e as camisetas do Grêmio que Matias carrega sempre para fazer fotos pelo mundo ficaram no cativeiro).