Alterações no sono, variações bruscas de humor e aumento dos acidentes domésticos são os efeitos mais observados, por pais e médicos, das primeiras semanas de quarentena vividas pelas crianças do norte da Itália. Lá, as escolas estão fechadas desde o dia 24 de fevereiro e, há quase um mês, é proibido sair de casa sem motivo de saúde ou trabalho.
Consequências que já são visíveis e, por enquanto, contornáveis. No entanto, podem se agravar com a duração prolongada das medidas de distanciamento social implementadas para controlar a difusão do coronavírus. Na Itália, a pandemia já contaminou mais de 115 mil pessoas e havia matado quase 14 mil até quinta-feira (2).
Caso a estabilidade dos números se confirme, um relaxamento gradual das restrições é esperado no país a partir do dia 14 de abril, mas as escolas não têm data para retomar as atividades presenciais. Cresce a impressão de que o ano letivo em curso, previsto para terminar em junho, possa ser encerrado sem o retorno às aulas.
Diante desse cenário, a situação das crianças virou um debate nacional que envolve pais, especialistas, governos regionais e o primeiro-ministro. De um lado, um grupo defende que é preciso pensar em medidas especiais para garantir a saúde das crianças. De outro, estão os que dizem que, com tantos contaminados e vítimas, não é hora de amolecer as regras.
Apelo
Associações de pais nas cidades de Milão e Florença se mobilizaram para pedir ao governo permissão para as crianças saírem às ruas um pouco por dia.
"Elas estão obrigadas a ficar 24 horas por dia entre as paredes de casa, frequentemente em apartamentos muito pequenos, dividindo o espaço com tantos familiares, e isso, como já evidenciado por pediatras e psicólogos, a longo prazo pode fazer muito mal à saúde física e mental", diz trecho da carta aberta de pais de Milão ao governo. "Pedimos uma hora de ar para crianças e adolescentes, sem desrespeito às regras de distância de segurança", acrescenta.
Os genitores florentinos vão na mesma linha, mas, em vez de uma, pedem meia hora diária. "Respeitamos o direito dos cães de poderem satisfazer suas necessidades fisiológicas em repetidos passeios ao longo do dia", afirmam, também em carta. "Estamos preocupados com o fato de que ninguém tenha colocado seriamente o problema das crianças", ressaltam também.
Diante do apelo, o premiê Giuseppe Conte abordou a questão em seu discurso na TV na quarta-feira (1º), mas não modificou as regras.
— Não autorizamos a hora do passeio com as crianças. Mas, quando os pais forem ao mercado, como as crianças são as únicas que não podem sair de casa, é consentida a companhia de uma delas. Mas não podemos baixar a guarda — afirmou.
Para o psicoterapeuta Alberto Pellai, pesquisador do departamento de ciências biomédicas da Universidade de Milão, o debate acontece agora porque as crianças foram esquecidas pelas autoridades sanitárias, em razão de não estarem no grupo de risco do coronavírus. Ele afirma que elas estão "invisíveis".
— Como elas não são uma emergência clínica, não ficam doentes, não morrem e não enchem os pronto-socorros, estão invisíveis. Ninguém pensou em determinar aquilo que elas precisam para estarem bem. Não sei dizer se a "hora de ar" é a resposta. Mas é muito importante, neste momento em que estamos tentando sobreviver sem poder viver, entender o que significa fazer sobreviver uma criança. Uma criança desprovida de relações sociais e do corpo é uma criança em grande sofrimento. Se não podemos dar-lhes uma hora de ar, devemos fornecer aos pais outras indicações do que fazer — afirma.
Segundo ele, muitas das famílias têm competências para permitir que as crianças se autorregulem emocionalmente diante das novas restrições. Mas, em muitos casos, isso não acontece.
Devem receber mais atenção: quem vive em casa muito pequena, sem varanda, sem jardim ou pátio interno no prédio; filhos únicos; famílias que estavam fragilizadas antes do coronavírus, em processo de separação, por exemplo; e menores com necessidades educativas ou motoras específicas. As consequências a longo prazo da quarentena domiciliar prolongada se dividem em dois grupos, segundo Pellai.
— De um lado, o risco é hiperatividade e desregulação emocional. Quando a criança se torna sempre mais agitada e nervosa, e a oferta dos pais de contenção e regulação não é adequada, a criança se desequilibra nessa perspectiva hiperativa. É isso o que chamo de bomba-relógio. Depois de tanto tempo assim, não será fácil a criança reencontrar o equilíbrio funcional — descreve o psicoterapeuta.
O segundo risco é o extremo oposto, com as crianças se tornando cada vez mais recolhidas, isoladas e apáticas.
— Enquanto a primeira criança incendeia tudo, a segunda é como se estivesse congelada. A depressão infantil existe. Em ambos os casos, o elemento de regulação é o adulto. Se ele consegue continuar com energia, vital, disponível, cuidadoso, competente, em condição de oferecer experiências nutrientes e estimulantes à criança, esses riscos podem ser evitados — afirma Pellai.
Alterações no sono e no humor
Nas conversas entre mães e pais da área de Milão, há relatos de crianças que se tornaram mais sonolentas ou que passaram a dormir menos, explosões de raiva ou crises de choro desproporcionais a frustrações cotidianas comuns, como não conseguir abrir uma torneira. A arquiteta brasileira Flavia Lourenção, 38, que mora na Itália há 12 anos, notou que seu filho único, de 4 anos, perdeu o hábito da soneca diurna.
— Até tudo isso acontecer, ele ainda dormia à tarde na escola. Nos primeiros dias em casa, dormiu tranquilo. Mas, com o passar dos dias, não está querendo mais. Até porque ele está dormindo bastante à noite — conta.
Na sexta semana sem aulas, ela conta que o fuso horário da casa avançou entre uma hora e meia e duas horas, com todos indo dormir e acordando mais tarde. Outra diferença é que, no início da quarentena, ele perguntava frequentemente sobre quando voltaria à escola.
— Agora já se acostumou com a situação, se habituou com o fato de que ainda vai durar. Mas não sinto que ele esteja sofrendo. Ele parece feliz de estar com a gente em casa, brincado bastante com ele. Eu e meu marido não estamos conseguindo trabalhar o tempo todo, até porque a cabeça não deixa, então temos dado bastante atenção para ele — diz.
Para o médico Paolo Biasci, presidente da Federação Italiana de Médicos Pediatras, essa maior proximidade é o que faz a diferença.
— Tudo depende da família e dos pais, em como eles ajudam as crianças durante essa permanência em casa. Sabemos que as casas não são todas iguais, em que nem sempre é possível ter relação com o externo, que algumas são apertadas e cheias, mas algum movimento físico dentro é sempre possível. O mais importante é ficar em casa — conta.
Responsável pela Associação Cultural dos Pediatras da Lombardia, a médica Raffaella Schirò também é contra o relaxamento das medidas de contenção social para as crianças.
— Os grupos de pediatras de Milão não estão de acordo com a "hora do ar". As crianças são aquelas que se adaptam mais facilmente, são as mais resilientes. Os problemas muitas vezes são dos pais, que têm muita ansiedade. E as crianças precisam de uma correlação emocional com eles.
Segundo ela, além de queixas de distúrbio de sono, outra evidência apareceu nas últimas duas semanas.
— Estamos notando mais acidentes domésticos. Crianças que batem a cabeça, se cortam, se empurram. Os pediatras estão em alerta sobre possíveis casos de maus tratos. Se não se consegue entretê-los ou não há tempo para isso, ou o espaço é muito pequeno, com muitas crianças juntas, o risco de isso acontecer é maior.