A quarentena adotada para combater o coronavírus na França pode ter evitado quase 62 mil mortes, segundo uma pesquisa publicada pela Escola de Estudos Avançados em Saúde Pública (EHESP). Até o meio-dia desta sexta-feira (24), o país registrava 158.183 casos confirmados de covid-19 e 21.856 mortes, o que faz da França o terceiro país mais atingido pela pandemia na Europa, atrás de Itália e Espanha. Em relação à população, a taxa é de 33,5 mortes por 100 mil habitantes, enquanto Itália e Espanha têm 42,3 e 47,4, respectivamente.
O trabalho estima qual teria sido a evolução da doença se não tivessem sido impostas restrições para contê-la e compara esses números com os casos efetivamente registrados. O período estudado é de um mês, vai de 19 de março a 19 de abril, quando já estava em curso o lockdown, implantado em 17 de março.
Desde então, quem mora na França só pode sair de casa com justificativa, para comprar comida ou por motivos médicos. Exercícios físicos na rua só são permitidos um vez por dia, por um período de tempo e distância limitados. Em Paris, apenas de manhã cedo e depois do anoitecer.
O estudo calculou que foi de 83,5% a redução no número de mortes hospitalares, evitando 61.739 casos fatais na França. Ainda segundo a pesquisa,, sem medidas de controle, quase 23% da população francesa (14,8 milhões de pessoas) teria contraído o coronavírus no período analisado, taxa que subiria para 32,3% na região da Ile-de-France, onde fica Paris. Em todo o país, quase 670 mil pacientes teriam sido hospitalizados entre 19 de março e 19 de abril, e leitos de UTI seriam necessários para o atendimento de 155 mil pacientes.
Com uma demanda por leitos muito acima da capacidade hospitalar do país, afirmam os pesquisadores, haveria excesso de mortes por falta de atendimento. Quase 74 mil pacientes teriam morrido em hospitais (no período, sob confinamento, 12 mil mortes foram registradas).
Os autores observam que o impacto total deve ser ainda maior, porque o trabalho não contabiliza mortes em asilos e residências. Dados disponíveis em oito países indicam um número de mortes em asilos equivalente ao das mortes em hospitais.
"Como em muitos países, a verdadeira mortalidade geral na França permanece desconhecida; é provável que muitas mortes relacionadas à covid-19 não tenham sido identificadas como tal", escrevem os pesquisadores.
Além disso, com o excesso de demanda por leitos de hospital e UTI, um colapso do sistema teria provocado ainda mais mortes por outras emergências médicas não atendidas.
Como foi feito o estudo
Para projetar quantas pessoas teriam morrido, os pesquisadores usaram dados de contágio e internações em cada uma das 13 regiões metropolitanas francesas fornecidos pela Agência Nacional de Saúde Pública da França (SpF).
As regiões foram estudadas isoladamente, já que a trajetória da doença foi diferente entre elas. Essas variações também são evidenciadas pela proporção de infecções sintomáticas por região. Para evitar distorções, levaram em consideração os números sobre transferências de pacientes entre regiões.
Como a evolução da diferença e as taxas de transmissão variam com a faixa etária, consideraram na previsão 17 faixas com cinco anos de distância. Também estimaram a quantidade de pessoas que ficaria ou não exposta ao vírus, contrairia ou não a infecção, desenvolveria ou não sintomas, seria ou não hospitalizado (em leito comum ou UTI), morreria ou ficaria curada.
Com essas premissas, estabeleceram uma equação para reproduzir a dinâmica da epidemia em cada região antes do confinamento. O estudo calculou, em nível regional e nacional, o número total de internações e UTIs, a taxa de ocupação desses leitos (em relação à capacidade em 2 de abril) e o número de mortes previstas.
Os pesquisadores alertam que viagens entre as regiões antes podem afetar os resultados, mas consideraram que elas foram reduzidas. Outra ressalva é que o cálculo não leva em conta um possível impacto das variações sazonais na transmissão do coronavírus. Ainda não há evidências claras sobre esse ponto, mas especialistas têm sugerido que o efeito seja modesto.
"Parece razoável supor que a grande maioria da redução deve ser creditada ao bloqueio, mesmo que seja impossível, por enquanto, separar o efeito da quarentena do potencial efeito da sazonalidade", diz o estudo.
Outra imprecisão pode vir do fato de que a análise se baseia em números até 19 de abril, e pacientes que estariam hospitalizados nessa data poderiam morrer depois, se o sistema de saúde estivesse congestionado.
Também há um limitador no número significativo de incógnitas em relação ao coronavírus, como o efeito da idade na suscetibilidade à infecção, a probabilidade de desenvolver uma doença assintomática e a infecciosidade de casos assintomáticos. Os cientistas afirmam, porém, que o resultado encontrado vai na mesma direção que estudos anteriores, que estimaram redução na transmissão e nas mortes após a quarentena.
Outros resultados
De acordo com o estudo, a quarentena impediu 587.730 hospitalizações e 140.320 internações em UTIs no período estudado, em todas as regiões metropolitanas da França (reduções de 88% e 91%, respectivamente). Foi de 83,5% a redução no número de mortes hospitalares, evitando 61.739 casos fatais.
"Nossos resultados destacam o possível custo de vida de deixar a epidemia seguir seu curso, e a necessidade de medidas combinadas de controle para evitar uma segunda onda da epidemia quando o confinamento for relaxado", escrevem os autores.
Eles observam que o curso futuro de a epidemia ainda está sujeita a muitas incertezas, principalmente em relação ao efeito do clima. "Ainda é necessário mais trabalho para prever o comportamento da epidemia sob vários cenários nas próximas semanas."