Cerca de 240 milhões anos atrás, uma tempestade desabou na extremidade tropical do supercontinente Pangeia, atingindo as ilhas costeiras. A chuva caiu sobre florestas de cavalinhas e samambaias, carregando plantas e animais para o mar e enterrando-os em silte.
Entre as vítimas estava um pequeno réptil. Na época, não parecia grande coisa, mas recentemente, na revista Nature, uma equipe internacional de cientistas identificou o animal, chamado Megachirella, como o mais antigo ancestral conhecido da família dos escamados, representados por lagartos, cobras e anfisbenas.
Com dez mil espécies distintas, ela é uma das maiores ordens de vertebrados terrestres do planeta. Eles se encontram em seis continentes, se adaptaram a uma variedade imensa de habitat e tamanho, incluindo desde pítons de quase oito metros de comprimento até camaleões menores que uma borracha de lápis. Os membros extintos do grupo incluem cobras imensas, como a titanoboa, e os mosassauros marinhos, que chegavam a ter o tamanho de baleias pequenas.
"Os escamados habitam quase todos os ambientes; aprenderam a escalar, a nadar, a planar, e até mesmo a correr sobre a água", disse Tiago Simões, paleontólogo da Universidade de Alberta e um dos autores do estudo.
Mas sua origem é um enigma antigo. A família pertence a um grupo maior, a superordem Lepidosauria, uma categoria que também inclui uma linhagem irmã, a ordem Rhynchocephalia, representada hoje apenas pelo humilde tuatara, um pequeno réptil na Nova Zelândia.
Os dois grupos divergiram de um ancestral comum no passado distante, mas quando e como isso aconteceu sempre foi um mistério. Os dados genéticos por muito tempo sugeriram que os escamados se originaram em algum momento do período Triássico, de 252 a 247 milhões de anos atrás, segundo Adam Pritchard, paleobiólogo do Museu Nacional de História Natural do Smithsonian.
Mas, em termos de evidências fósseis, os únicos lepidossauros do período Triássico encontrados foram os Rhynchocephalia. Os primeiros fósseis conhecidos dos escamados vieram do final do período Jurássico, deixando um frustrante intervalo de 75 milhões anos entre o ancestral compartilhado e a forma do que são agora alguns dos animais mais conhecidos do planeta.
"É como se tivéssemos provas definitivas de uma família com dois ramos. Sabemos muito sobre os primórdios da vida e o desenvolvimento de um deles, mas não havia qualquer informação sobre o outro", afirmou Pritchard.
No início, a Megachirella não parecia oferecer muitas novidades.
O espécime foi encontrado por um caçador de fósseis amador, em 1999, em uma área de calcário nas Montanhas Dolomitas do norte da Itália. Esse calcário, que datava do período Triássico Médio, continha a parte da frente de um pequeno esqueleto levemente esmagado, com uma cabeça grande e patas pesadas.
Os ossos estavam bem conservados, mas eram um tanto difíceis de decifrar. Quando os cientistas o nomearam formalmente, em 2003, descreveram-no como um lepidossauro primitivo. A tecnologia disponível não era suficiente para um maior aprofundamento.
Mas, em 2014, Simões – que se especializava em desvendar a história evolutiva dos escamados extintos e existentes – encontrou um trabalho sobre o fóssil que chamou sua atenção. Ao examinar as figuras anatômicas, soube de imediato que estava olhando para um dos primeiros lagartos.
Contatou um dos autores do trabalho, Massimo Bernardi, paleontólogo do Museu de Ciência em Trento, Itália, e sugeriu que examinassem o fóssil através de microtomografia de alta resolução, para ver melhor os ossos comprimidos. Bernardi, que estava pensando em algo do tipo, concordou.
Com o aparelho, os cientistas foram capazes de reconstruir digitalmente a pequena ossada esmagada, desvendando a anatomia invisível a olho nu. Descobriram que porções da caixa craniana do animal assemelhavam-se mais a um iguana moderno do que a outros répteis do Triássico, bem como a ordem dos dentes e a falta de perfurações na parte inferior das vértebras da Megachirella.
Ainda mais intrigante eram os ossos do punho, ombros e braços do animal, mais parecidos com os vistos em lagartos vivos. Entretanto, a Megachirella tinha alguns vestígios de anatomia ausentes em lagartos e serpentes modernos: a gastrália, ou costela abdominal, ainda encontrada em tuataras e crocodilos, e um pequeno osso da cara chamado de quadratojugal.
Tanto a aparência da Megachirella no Triássico Médio quanto os fósseis de Rhynchocephalia são um forte argumento de que os primeiros escamados surgiram no final do Permiano, período há 270 milhões anos que foi abruptamente interrompido por uma das piores extinções em massa conhecidas. Em seguida, no início do período Triássico, mais de 90 por cento da vida no planeta tinha sido dizimada.
Os grupos de animais sobreviventes rapidamente se diversificaram em todo o mundo, de acordo com Michelle Stocker, paleobióloga da Virginia Tech. As árvores se encheram de drepanossauros, parecidos com camaleões, e posteriormente com os primeiros pterossauros; os oceanos logo deram origem aos primeiros répteis marinhos; o arcossauro se transformou em um crocodilo bípede.
Os lepidosauria se refugiavam nas sombras, passando por sua própria explosão de diversidade. E, segundo Pritchard, enquanto os Rhynchocephalia se saíram bem durante dezenas de milhões de anos, agora parecia que os escamados tinham levado a melhor, tornando-se ainda mais comuns e diversificados.
Em algum momento do Jurássico, 75 milhões anos após a Megachirella, os primeiros lagartos reconhecíveis emergiram, ainda tendo certas características anatômicas de seu ancestral distante.
"A extinção do Permiano abriu caminho para o surgimento dessas linhagens, dando-lhes a oportunidade de colonizar a terra e o mar", disse Simões.
"Grande parte da fauna moderna, especialmente em termos de répteis, se originou em algum ponto no Triássico. Os primeiros mamíferos são desse período, os primeiros dinossauros também, e agora sabemos que até os primeiros lagartos são da mesma época."
A mistura da anatomia arcaica e moderna da Megachirella é também uma pista de quais famílias de lagartos atuais foram as primeiras a emergir, segundo Simões. Esse é um tópico controverso: desde 2014, as árvores genealógicas baseadas em DNA sugerem que as lagartixas pertencem ao primeiro grupo de lagartos modernos a evoluir.
Mas os cientistas que se baseiam principalmente em fósseis defenderam que a família grande e diversificada dos iguanas – um grupo que inclui camaleões, iguanas e agamas – seria a original. Simões incluiu informações da anatomia da Megachirella a um conjunto de dados maior que havia montado ao estudar espécies de escamados de 50 coleções de museus em 17 países. A árvore resultante sugere que as lagartixas foram de fato a primeira família de lagartos a surgir, no período Jurássico (embora não haja nenhuma evidência de que tenham adquirido seus dedos característicos até o período Cretáceo).
Os fósseis de indivíduos da subordem Iguania aparecem no Cretáceo, e os dados genéticos os agrupam próximos a lagartos e serpentes, de acordo com Simões. No final dessa era, os Rhynchocephalia tinham desaparecido, deixando apenas os tuataras, mas os escamados continuaram a se diversificar em suas inúmeras formas atuais.
"O mais surpreendente é que essas poucas linhagens sobreviventes acabaram se diversificando bastante. Imagine como o mundo devia ser variado no Mesozoico, com todos os ramos da árvore genealógica dos répteis coexistindo", disse Simões.
Para Stocker, parte do valor das Megachirellas está no fato de que uma grande quantidade de informação foi retirada de seus ossos muito tempo depois que o fóssil foi descoberto e descrito, uma prova do valor dos espécimes empoeirados existentes em coleções de museus em todo o mundo.
"Mesmo a informação que podemos extrair de um fóssil hoje pode ser pouca em comparação com o que a tecnologia nos permitirá entender sobre esse animal extinto no futuro. Por isso é importante que cuidemos desses fósseis agora para os futuros pesquisadores", disse Stocker.
Há ainda um monte de perguntas sobre as Megachirella e o caminho sinuoso que os escamados trilharam. Afinal, uma enorme lacuna permanece na história da família, e muitos tipos extintos têm ligações pouco claras com as espécies modernas.
"Há um vão maior na linha do tempo entre a Megachirella e os outros escamados do que entre humanos e os últimos dinossauros. Se você explorar os primeiros 75 milhões de anos de qualquer outra família, verá uma quantidade surpreendente de diversidade em corpos e tipos", disse Simões.
"Se continuarmos a procurar nesse período, vamos encontrar coisas espantosas com as quais nunca sonhamos, coisas que nunca pensamos que os lagartos pudessem fazer."
Por Asher Elbein