ALBERTO PFEIFER
Pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP)
A topografia esquerda-direita está morta.
Não porque tenha havido convergência para o centro. Mas porque o potencial explanatório do conceito se diluiu. O que realmente explica o ethos sócio-político e a organização da produção contemporâneos não é esse antagonismo clássico – a "distinção contestada"ou a "díade sobrevivente", no dizer de Norberto Bobbio – mas sim a tensão entre globalismo e nacionalismo; entre deixar-se pertencer ao mundo da igualdade tecnológica ou a ele resistir, entrincheirado sob muralhas físicas e legais, que nada solucionam das crises internas e apenas acirram a sensação de desigualdade e não-pertencimento.
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Dois eixos dicotômicos explicam a organização do poder no Ocidente pós século 18: igualdade/desigualdade e liberdade/autoritarismo. A esquerda esteve mais associada à busca da igualdade. A direita aceita a desigualdade como estímulo e resultado da competição. Esquerda e direita consumaram boa parte da disputa pelo poder político por meio do debate sobre o controle dos meios de produção: propriedade privada em oposição ao coletivismo. Na maior parte dos casos, a estatização, como proxy do coletivismo, redundou em reprivatização seletiva e ressurgimento da desigualdade.
Pela busca da igualdade, adotou-se a fórmula operacional do autoritarismo – Estado forte e centralizador – em justa contraposição a um dos libelos do ideário iluminista, o da liberdade. O direito à propriedade privada, desde Rousseau, parecia um contrassenso ante à possibilidade tangível de alcançar-se a igualdade. Nas democracias ocidentais, aversas à adoção de regimes autoritários – a derrota do fascismo na II Guerra Mundial sacramentou esta orientação –, passou-se a limitar o uso e o desfrute da propriedade privada, por meio de condicionantes legais tais como o conceito de uso social da propriedade, mas especial e eficazmente por meio de sistemas tributários progressivos: quem ganha mais e acumula mais paga mais imposto, proporcionalmente. Formou-se assim a base material do chamado bem-estar social europeu do século 20.
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Contudo, a convicção ideológica e o conforto material resultantes da combinação do conceito de Estado-nação (erigido após a paz de Westfália de 1648) e o sistema de bem-estar social do pós-II Guerra foram torpedeados pela mesma nova força que levou ao colapso final do socialismo real: a revolução tecnológica. A somatória de saberes e técnicas disruptivas relacionadas à informação, comunicação e miniaturização e sua escalabilidade engendrou a acelerada acessibilidade a produtores e consumidores de manufatura eletroeletrônica e afins. A derivada edificação de um meio social tecnológico – as redes virtuais – propicia a inclusão universal e a consequente desintermediação do consumo de informação e da vocalização de aspirações individuais. Erode-se o poder dos mecanismos intermediadores de representação tradicionais: partidos políticos, sindicatos, igrejas.
Navegar nesta realidade global exige nova instrumentação. Não se trata mais de estar à direita ou à esquerda como no século 19, nem da polarização simétrica da Guerra Fria. Trata-se de compreender que o eixo estruturante é agora estar dentro ou fora, incluído ou não. No dizer de Yuval Harari, entre o nacional e o global. Mais do que estar "in" ou "out", é discernir que os parâmetros limitantes não são mais delineados pela fronteira da jurisdição nacional, mas pelo aptidão ao pertencimento a uma lógica produtiva que demanda capacitação individual e previsibilidade do ambiente produtivo.
O ressurgimento do autoritarismo nacionalista xenofóbico é um suspiro reativo de eleitores que se percebem entre os despossuídos em sociedade desiguais. Faltam, sim, válvulas de escape e mecanismos para contrabalançar as frustrações derivadas do sub ou do desemprego e do vazio dos excluídos. Se identidade é uma amarração da igualdade, o bode expiatório é o outro: as minorias, os estrangeiros. Trump, Wilders, Le Pen, Putin, todos de "direita", calcados na hipertrofia da liberdade individual, ou os populistas bolivarianos Chávez, Kirchner, Morales, Correa, estes de "esquerda", oferecendo um coletivismo igualitário folclórico, rechaçam e esquivam-se do mundo, ensimesmando-se e obscurecendo suas populações. Propõem o abandono do mundo globalizado, e a restauração do universo nacional, do isolacionismo autárquico.
Tão inverossímil é essa narrativa quanto insustentável do ponto de vista material. Mas seu fôlego curto – mais breve quanto mais vigorosas as instituições democráticas – engendra potencial destrutivo sobre o intrincado arcabouço da governança global assentado após a II Guerra e solidificado com o fim da Guerra Fria. O risco do nacionalismo autoritário não recai só nas sociedades afetadas, mas no bem-estar e na segurança do mundo.