Por uma coincidência que certamente não é casual, os primeiros efeitos da posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, marcada para a próxima sexta-feira, deram-se na indústria símbolo da pujança americana: a automobilística. E nova expressão ganha força a partir de eventos como sua eleição e outras vitórias de forças nacionalistas mundo afora: a "desglobalização". Tudo isso em meio a suspeitas sobre dossiê russo comprometedor acerca do seu comportamento, a confirmação de que exigirá do México o pagamento de um muro para evitar a imigração ilegal e a existência de 150 empresas suas em 25 países, além de 45 pedidos de patentes pendentes de aprovação na China, situações que lhe provocam impasses nos campos interno e diplomático.
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O Federal Reserve (FED), banco central dos EUA, divulgou relatório que indica "incertezas" com a eleição de Trump. Em ata da reunião de 14 de dezembro, quase toda sua equipe concorda que é "cedo" para avaliações. Só que, em razão dos riscos, o FED anunciou tendência de aumento dos juros. Outro sinal, restrito ao setor automobilístico, mas significativo: no dia 6, as ações da japonesa Toyota caíram 3% após ameaças feitas por Trump de lhe impor pesados tributos se confirmasse uma fábrica no México para vender carros nos EUA. A Ford, também sob pressão, já cancelara planos de construir filial em San Luis Potosí, no México, em investimento de US$ 1,6 bilhão. O presidente da Ford, Bill Ford Jr, telefonou para Trump e lhe disse que transferirá esses valores para veículos elétricos e híbridos em Michigan (EUA). Em nota, disse: "Este investimento de incremento na fábrica de montagem de Flat Rock (Michigan) tem origem no US$ 1,6 bilhão que a companhia previamente planejara investir em planta no México".
Outra que reviu planos foi a Fiat Chrysler. Mudará a produção de uma picape do México para os EUA. E Trump se diz grato. No Twitter, elogiou as montadoras. "A Fiat Chrysler anunciou planos de investir milhões em fábricas no Michigan e Ohio, criando 2 mil empregos. Isso após a Ford ter dito que expandirá a fábrica no Michigan em vez de construir fábrica de milhões no México. Obrigado Ford e Fiat C".
Dúvidas sobre o fôlego da "desglobalização"
A General Motors igualmente sofreu intimidações. Pouco antes da Ford, Trump ameaçara lhe impor um "grande imposto" por fabricar o Chevrolet Cruze no México. Já a BMW se disse "comprometida" com nova fábrica no México, apesar das declarações do presidente eleito de lançar uma taxa aduaneira. Analistas já veem alto risco para o Nafta, o tratado norte-americano de livre comércio, assinado entre EUA, México e Canadá em 1994.
O economista Antonio Corrêa de Lacerda teme a "desglobalização", que define como "exatamente o oposto do que ocorreu nas últimas décadas". Vê tudo como um desdobramento da crise econômica iniciada em 2008 e faz uma recapitulação histórica, lembrando a década de 1930, que se seguiu à quebra da bolsa de valores de Nova York e, mais adiante, resultou em governos fascistas mundo afora. Lacerda não se limita ao crescimento do conservadorismo, mas ao fechamento de fronteiras em geral:
– Aliaram (nos anos 30) protecionismo a xenofobia e tiveram apelo popular.
Já o economista Marcos Troyjo diz que "a fase de desglobalização não vai durar muito". Mesmo admitindo o "perigoso renascimento dos nacionalismos ameaçadores como nos anos 20 e 30 do século passado" e citando Trump e outros eventos recentes, ele flexibiliza os efeitos desse fenômeno.
– A ascensão de potências como China e Índia levará a oportunidades de fornecimento para países exportadores de commodities agrícolas e minerais e a uma nova onda de globalização industrializadora para nações que produzirem melhor relação-custo benefício ante uma China que se torna mais cara e sofisticada – afirma ele, para acrescentar, referindo-se ao "Brexit" e ao "trumponomics", que malograrão diante do impacto da China como superpotência e da Índia em ascensão, que levarão a "mais globalização".
Mas os efeitos da ascensão de Trump se fazem notar além da economia. As declarações xenófobas e misóginas ainda estão no plano verbal, mas provocarão reação prática logo após posse.
Foi convocada uma "marcha das mulheres" para o dia 21, o seguinte à solenidade em Washington. Prevista para reunir 200 mil pessoas, a caminhada sairá do Lincoln Memorial, monumento situado próximo ao Capitólio (prédio do Congresso), seguindo até a Casa Branca. A organizadora, Teresa Shook, deu a ideia em postagem no Facebook. No dia seguinte, acordou e deparou com 10 mil curtidas de mulheres.
– São esses movimentos sociais espontâneos que vão salvar o mundo. Trump é o primeiro presidente da história dos Estados Unidos que chega ao poder sem qualquer proposta generosa – diz o historiador Voltaire Schilling, autor do livro América – a História e as Contradições do Império (L&PM).
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DECLARAÇÕES DE TRUMP
"Se o Putin gosta do Donald Trump, vejam só pessoal, isso é uma vantagem, não uma desvantagem."
Sobre relações com a Rússia
"Alguém realmente acredita nessa história? Além do mais, sou bastante germofóbico."
"Espero que daqui a alguns anos possa dizer: 'vejam só, vocês fizeram um bom trabalho'. Caso contrário, terei de dizer para eles: 'vocês estão demitidos'."
"Não é uma cerca. É um muro, mesmo (...). Não quero esperar um ano, ou um ano e meio. O México pagará por ele (...) seja com um imposto, ou um pagamento."