Os analistas apostam que as relações entre Estados Unidos e Brasil não sofrerão grandes alterações com a surpreendente vitória de Donald Trump, conhecido por um alardeado protecionismo e uma temida xenofobia – creem que assim seria também com a até terça-feira esperada eleição da democrata Hillary Clinton. A ideia geral é de que o pragmatismo de uma relação antiga impedirá grandes alterações de rumo.
– A relação com o Brasil, em especial, é de amizade e cooperação. Mesmo com Trump, as relações são pragmáticas, não há margem para mudanças – diz o cientista político João Paulo Peixoto, da Universidade de Brasília (UnB).
Peixoto acredita em estabilidade na política bilateral entre Brasil e EUA. Motivo: a força desse pragmatismo a que se refere e os interesses comerciais envolvidos.
Fala-se no temor de que o suposto preconceito de Trump contra mexicanos, ilustrado pelo muro que o republicano cogitou erguer entre os dois países, só é contra os mexicanos porque são eles os vizinhos. Na verdade, seria contra todos os latino-americanos.
No México, já se previa um "furacão" econômico caso Trump fosse eleito – a palavra foi dita pelo próprio presidente do Banco Central mexicano, Agustín Carstens. A questão é que isso não se limitaria ao território mexicano. Haveria um efeito dominó, porque a Aliança do Pacífico, integrada por México, Chile, Peru e Colômbia, seria afetada. E isso ocorreria bem quando, pela primeira vez, o Mercosul, de perfil atual mais neoliberal e pragmático, ensaia uma aproximação com a Aliança do Pacífico.
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Acordos comerciais em geral e as negociações do Mercosul com os países do Pacífico em particular tenderiam a ser congelados, e, vista por esse ângulo, a eleição de Trump poderia afetar o Brasil.
Até um possível fechamento comercial em relação à China e um conflito decorrente disso afetaria o mundo – com reflexos, claro, na América Latina e no Brasil. O novo quadro, aliás, poderia provocar o efeito residual de, fechadas as portas dos EUA para a China e até para países como o Brasil, o oriente se intensifique como rota alternativa para o comércio brasileiro e latino-americano.
– Entendo o raciocínio de que a Aliança do Pacífico possa ser afetada, mas não vejo maiores movimentações do Brasil em relação ao Pacífico, o que, na verdade, é uma pena. O Brasil está ainda preocupado excessivamente com o Mercosul, mas este bloco inibe os movimentos do país para outros acordos – diz Peixoto.
O professor Kai Enno Lehmann, da Universidade de São Paulo (USP), imagina que haveria alguma preocupação de Trump em relação à América Latina, mas se limitando ao México e à América Central, em razão dos compromissos que ele assumiu de conter a imigração. Por isso, com Hillary não haveria mudanças, mas com Trump elas podem ocorrer em algum nível. De qualquer forma, ele entende que "a opinião pública vai levar o governo americano a se ocupar mais de Rússia, Oriente Médio e Estado Islâmico, que são temas que os preocupam, e a América Latina não seria prioridade".
Efetivamente, durante toda a campanha, nem Hillary nem Trump se manifestaram sobre a América Latina em geral. A exceção foi de Trump ao discorrer depreciativamente sobre o México e até prever uma revisão dos tratados internacionais com este país – e o Canadá. No mais, a região latino-americana, com população superior a 600 milhões de habitantes, foi ignorada. Os temas sobre política externa giravam em torno da guerra síria, do futuro iraquiano, de Israel e palestinos, de Rússia e Irã. Nada se falou sobre temas como o êxodo migratório centro-americano o processo de paz colombiano, a crise na Venezuela ou a instabilidade brasileira.
O diplomata Rubens Barbosa, ex-embaixador em Washington, é taxativo:
– Acho que nada vai mudar. A América do Sul está longe de ser uma prioridade. Na América Latina, teríamos o México e Cuba, mas, na América do Sul, não há interesse. Se você fizer uma lista de 10 ou 15 prioridades americanas na política externa, ali não estará nem América do Sul nem Brasil.
Barbosa fazia uma ressalva positiva em relação a Hillary: ela conhece o Brasil.
– Hillary já esteve aqui algumas vezes, e isso seria bom.
Já em relação a Trump, esse conhecimento não existe.
O diplomata diz que essa situação ficará inalterada enquanto o Brasil não resolver seus problemas econômicos e não estabelecer "regras claras para a atração de empresas americanas".
– Para atrairmos empresas americanas, precisamos pôr nossa casa em ordem. Do jeito que está, não dá.
Antonio Jorge Ramalho, especialista em relações internacionais da UnB, também acha que as relações entre Brasil e EUA não devem mudar muito após a eleição do novo presidente. Ramalho vê uma possível "pressão para abrir o mercado brasileiro em algumas áreas", mas isso, diz ele, ocorreria de forma setorial.
– Seriam situações facilmente administráveis por burocracias, que se conhecem e se respeitam – afirma.
A respeito de Cuba, durante ato na Flórida, Trump afirmou que pretende reverter o curso da política de reaproximação com o país socialista, iniciada pelo presidente Barack Obama em 2014. O que pode reverter essa tendência, como de costume, é o pragmatismo: interesses comerciais, de democratas ou republicanos, estão atraídos pelas novas perspectivas que se abrem com a promissora abertura do carente mercado cubano.