O Museu do Holocausto inaugurado há cinco anos em Curitiba está decidido a fazer do genocídio judaico "ferramenta" que perenize a memória e sirva de exemplo do ponto a que podem chegar a discriminação e o preconceito. No Rio Grande do Sul, esse propósito se materializará com o convênio firmado entre a Federação Israelita do RS (Firs) e a seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para inserir o Holocausto e o antissemitismo no projeto intitulado OAB vai à escola, previsto para começar dentro de alguns meses. O museu fornecerá material para o programa.
A ideia é promover "a tolerância e a fraternidade, em respeito aos direitos humanos e ao processo civilizatório", diz nota da Firs. A OAB pretende "conscientizar alunos das escolas públicas".
Leia mais:
Elie Wiesel, escritor, prêmio Nobel e grande testemunha do Holocausto
Militar israelense causa polêmica em cerimônia para recordar Holocausto
A guerra e a paz segundo seis crianças israelenses e palestinas
Na terça-feira, o coordenador do museu, Carlos Reiss, foi à sede da OAB e falou com Zero Hora.
Mesmo com testemunhas dos campos nazistas, há revisionistas que buscam negar o Holocausto. E quando não houver testemunhos primários?
A preocupação existe. É importante identificarmos por que certas pessoas negam o Holocausto. Há razões diferentes. Uma tem a ver com atacar Israel, tirar sua legitimidade. E há o racismo. Existe negacionismo até acadêmico. Buscam detalhes, picuinhas. O Museu do Holocausto de Jerusalém tem um trabalho que mostra como isso ocorre. Transmitir sem testemunho primário é o desafio desde os anos 1990. Devemos transformar a memória coletiva do Holocausto em universal. Quando as milhões de histórias, cada uma com nome e sobrenome, forem entendidas como parte da história de quem entra em contato com ela, a memória coletiva nos permitirá trabalhar temas atuais. Não importará se o Holocausto aconteceu há 70 ou 700 anos. Usaremos o Holocausto para tratar de diversidade e vida. E, enquanto houver sobreviventes com saúde e dispostos a falar, temos de parar e ouvi-los.
E quanto não houver?
A ideia é tratar o Holocausto não como história judaica, mas universal. Não ver como era um gueto há 70 anos, mas puxar para hoje. É aqui que isso fará sentido. Deve servir para entendermos preconceito, bullying, xenofobia. Quando o mundo compreender essa memória coletiva universal e que as histórias do Holocausto são de todos, que precisamos tirar lições e usá-las, o Holocausto poderá ter acontecido há 70, sete ou 700 anos.
O contexto israelense influencia nesse trabalho do museu?
Precisamos mostrar o que é um judeu. O que é um povo. São pessoas que não precisam necessariamente morar no mesmo lugar, mas compartilham o pertencimento. Um povo compartilha memória coletiva, história em comum, cultura, tradição, língua. Não necessariamente religião. Os árabes são um povo com cultura milenar maravilhosa e religiões diferentes. Os judeus, além de serem um povo, normalmente compartilham a religião. E há Israel. Às vezes, as pessoas não entendem que pode haver israelense árabe e muçulmano.
O antissemitismo se ampara até em teses de que o povo judeu seria inventado.
Todo povo é invenção. Qualquer povo constrói identidade, pertencimento em comum. Parte dessas características está na memória coletiva. Quando falamos na saída dos judeus do Egito, sentimos que aquilo ocorreu conosco, mas ninguém tem certeza de que seu tatataravó estava lá. É irrelevante isso.
Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro, descreve o brasileiro como povo multifacetado. O que representa essa reflexão?
Qualquer memória coletiva grupal precisa ser compartilhada. No Brasil, temos facilidade de integração, e isso é importante. Sobre Holocausto, é importante não falar só dos sobreviventes que vieram para o Brasil, mas entender a diversidade e falar em tolerância, vida, sobrevivência. O Holocausto é ferramenta para transformar a memória coletiva judaica em universal.
Há influência brasileira nisso?
Sem dúvida. O Holocausto pode ser trabalhado de formas diferentes, algumas com mais ênfase na questão judaica. O Museu do Holocausto existente em Curitiba precisa ser brasileiro, até para ter capacidade de dialogar.
O Holocausto como ferramenta serve para mostrar a que ponto pode ir a discriminação?
Sim, ao fazer com que as pessoas se sintam representadas. O Museu do Holocausto em Jerusalém tem dificuldades de se universalizar por estar em Israel, e Israel se apoderou da memória do Holocausto. Isso ajudou a criar o Holocausto restrito ao judaísmo. O Holocausto originou a palavra genocídio, que não existia até 1944.
O Holocausto não é importante na formação de Israel?
Sem dúvida é. Não critico o que foi feito nos anos 1950 e 1960. Mas reflito sobre a memória que vamos perpetuar. Referência em educação e Holocausto, o checo Yehuda Bauer, diz que Israel não nasce por causa do Holocausto, mas apesar do Holocausto. Deve-se relembrar a história de luta dos movimentos sionistas de retorno para Israel. Se formos pensar no século 20 sem o Holocausto, talvez Israel fosse fundado inclusive antes disso.
Mesmo universalizado, o Holocausto não é episódio judaico?
O professoro Mário Sinai diz: "É impossível falar sobre o Holocausto sem falar nos judeus", porque os judeus tiveram papel central na ideologia nazista. E é verdade. Mas o Museu do Holocausto procura ter reverberação universal, para transmitir valores, passar ética.