A mudança no clima na capital síria é inconfundível. As explosões de bombardeios já não dominam os dias e noites. A tensão da segurança está deixando a cidade como o ar de um balão. Ainda há postos de controle por toda parte, mas os guardas estão relaxados, até mesmo joviais, brincando com estranhos: "Alguma bomba hoje?".
Conforme forças de segurança dominam os últimos redutos insurgentes ao longo da fronteira com o Líbano, liberando o corredor estratégico de Damasco até a costa, região natal do presidente Bashar Assad, a mensagem é clara: o governo está vencendo, e pode se dar ao luxo de ser magnânimo. Ele está oferecendo o que chama de reconciliação a adversários arrependidos, e alguns estão aceitando.
Mas a relativa tranquilidade pode ser enganosa. Abaixo de uma calma imposta por forças militares, cercos e fome, o palco parece montado para um período instável de conflitos prolongados que podem voltar a explodir em alguns meses ou anos. Ressentimento e desconfiança estão por todos os lados. O país continua dividido entre áreas do governo e o norte controlado pelos insurgentes. Na capital, a movimentação parece reprimida, e não diminuída.
Mesmo reafirmando o controle no centro crucial do país e aplicando o cessar-fogo em bairros problemáticos de Damasco, o governo não solucionou um dos agravos políticos que continuam rasgando o tecido nacional. Seus opositores, armados e desarmados, estão recuando e aceitando a derrota em algumas regiões - por enquanto. Porém, muitos dizem não ter desistido, e estariam apenas reavaliando seus planos e objetivos com um olho no futuro.
Dezenas de entrevistas em áreas controladas pelo governo, em Damasco, a cidade central de Homs e a remota cidade de Palmira, revelam que muitos sírios - tanto aliados quanto adversários do governo - duvidam das garantias oficiais de que a vida está voltando ao normal. Entre os 9 milhões expulsos de suas casas, muitos permanecem sem saber quando (e se) poderão voltar.
Em Sayeda Zeinab, perto de Damasco, uma mulher que fugiu de um bloqueio xiita por insurgentes sunitas disse esperar que seu filho se junte aos combatentes do governo em seu aniversário de 15 anos - em 2027. Perto dali, outra síria xiita enterrou o marido, um miliciano pró-governo morto em batalha. Ela jurou nunca retornar à sua aldeia de maioria sunita, a apenas algumas quadras de distância, depois que insurgentes - incluindo antigos vizinhos - queimaram a loja da família "porque somos xiitas".
- Tudo acabou - , declarou ela.
No coração da capital, mesmo por trás de portões de segurança recém-pintados com a bandeira síria oficial, os opositores do governo dizem estar simplesmente mantendo as cabeças baixas. Dizem que poucos refugiados confiam nas promessas de um retorno seguro a regiões antes rebeldes.
Alguns prometem continuar a luta de forma pacífica, outros afirmam que os combatentes estão desistindo por falta de armas, ou para poupar suas cidades de mais destruição e fome - mas geralmente não por mudanças de opinião.
- Agora não existe sentido, dinheiro ou armas - , explicou um dono de loja que, como muitos outros, pediu para não ser identifico. - Mas estou certo de que há milhares de jovens que estão apenas esperando por sua chance de lutar - .
As autoridades insistem que os sírios logo voltarão a viver tranquilamente juntos, e muitos em todos os lados esperam exatamente isso. Mas as queixas sobre repressão, corrupção e desigualdade que desencadearam protestos em 2011 continuam sem solução. Assim como os ressentimentos que cresceram exponencialmente durante uma guerra que matou 150 mil pessoas, aprofundou rixas sectárias e políticas e deixou aparentemente todas as família com membros mortos, feridos, presos ou sequestrados.
As cicatrizes estão mais espalhadas do que aquelas da insurgência da Irmandade Muçulmana, com pico em 1982, e sua repressão por forças de segurança que matou dezenas de milhares e destruiu a Cidade Velha de Hama. Aquelas feridas infeccionaram em silêncio durante décadas, ajudando a alimentar a conflagração atual.
Numa mudança de atitude, hoje o governo reconhece rotineiramente que muitos sírios, e não apenas estrangeiros, o estão combatendo. Porém, seja para justificar anistias ou evitar abrir concessões, autoridades assumem a posição de que a maioria dos insurgentes sírios não é motivada por política, mas subornada, enganada ou coagida - pessoas simples e analfabetas, que serão recebidas de volta como crianças desobedientes.
Os opositores de Assad sustentam que qualquer reconciliação precisa ser uma via de mão dupla. O governo, segundo eles, deve reconhecer que bombardeou sistematicamente alguns bairros e prendeu, torturou e matou manifestantes pacíficos.
- Eles precisam admitir seus erros e pedir desculpas ao povo sírio - , afirmou outro empresário de Damasco. - Não existirá uma solução política sem a justiça de transição. Em qualquer dos lados, todos que cometeram crimes devem ser julgados - .
Mas algumas autoridades responsáveis pela reconciliação dizem que o governo não tem nada do que se desculpar. O major Ammar, oficial de segurança política em Homs com o rosto parcialmente paralisado por uma bala de insurgentes, declarou ter perdoado seu agressor, pelo bem da Síria. Mas abusos e crimes de guerra pelas forças de segurança, segundo ele, são "rumores" que "não aconteceram".
Ele comanda um prédio escolar onde ex-insurgentes são mantidos para verificações de segurança, à medida que entregam suas armas e saem da Cidade Velha bloqueada.
Centenas já foram liberadas, mas muitos permanecem ali, alguns com familiares. No pátio interno, o major passava os braços ao redor do pescoço de jovens sírios, chamando-os de novos amigos que se juntam a ele para jogos de xadrez e futebol.
Os homens afirmaram ter lutado por dinheiro ou crenças equivocadas. Ecoando testemunhos por Skype de outros combatentes, eles contaram que alguns comandantes rebeldes ostentavam cigarros, armas e comida enquanto eles passavam fome.
- Nós comíamos gatos - , disse um deles. - E estávamos prestes a comer gente - .
E acrescentou, enquanto o oficial ouvia: - Que Deus proteja o exército - .
Mais tarde, outro homem sussurrou: - Nem tudo o que dissemos era verdade - . Após sua evacuação, contou ele, - o coração fica aliviado, mas a mente se pergunta o que acontecerá conosco - .
Os defensores do governo em Homs ficaram preocupados com a decisão de permitir evacuações, conceder anistias e fornecer a limitada ajuda de alimentos enviada à Cidade Velha em janeiro.
- Eles estão fortalecendo terroristas - , afirmou Jamila Ali, de 42 anos, numa rua dividida por barreiras de concreto protegendo pedestres contra atiradores insurgentes - de cujas balas, segundo ela, sua filha escapou por pouco.
Em Damasco, a agitação retornou à Cidade Velha, mas comerciantes dizem que os clientes estão quebrados e as vendas são péssimas. Os novos cessar-fogo são amplamente vistos como frágeis, coagidos ou insinceros.
Por enquanto, a exaustão, o medo e o choque com os pesados custos da revolta parecem ter fechado a Síria central.
Um dono de loja que apoia os insurgentes contou que, recentemente, um pintor apareceu junto de um miliciano do governo, oferecendo-se para adornar sua porta com a bandeira oficial por US$30.
- Então eu aceitei - , disse ele, sorrindo. - E se eles vierem com repórteres, eu também direi: 'Bashar é o maioral' - .
Relativa tranquilidade
Apesar da aparente tranquilidade, clima é de tensão em Damasco, na Síria
País continua dividido entre áreas do governo e outras controladas pelos insurgentes
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