Em janeiro, a Justiça italiana chegou ao reduto da Camorra com uma escavadeira. Policiais elegantes, com botas bem engraxadas, posavam para as câmeras de TV enquanto a máquina escarafunchava um descampado em busca de lixo tóxico ou qualquer outro dejeto industrial escondido ali.
Dois informantes presos tinham identificado o local como um dos pontos secretos em que a máfia enterrava seu entulho, ao norte de Nápoles, em uma região conhecida como Triângulo da Morte, dado o surgimento de inúmeros casos de câncer. Um grupo ambiental calcula que 10 milhões de toneladas de material contaminado tenham sido enterradas ilegalmente ali desde o início dos anos 90, representando um ganho de bilhões de dólares para a organização criminosa, mesmo que isso tenha acabado com o solo e com o lençol freático.
Embora o despejo seja publicamente conhecido e esteja amplamente registrado, a crise do lixo agravou o problema e a queimada do material tóxico rendeu à região um novo apelido: Terra do Fogo. Com novas revelações que não param de pipocar e deixam o público cada vez mais revoltado, a questão é: será que o governo italiano terá coragem de peitar a Camorra e limpar a bagunça? Aliás, será que é possível limpá-la?
- O meio ambiente aqui está envenenado. É impossível limpar tudo. A área é muito grande. Estamos vivendo sobre uma bomba-relógio - afirma o Dr. Alfredo Mazza, cardiologista que registrou um aumento alarmante nos casos de câncer em um estudo, em 2004, publicado na revista especializada britânica The Lancet.
O lixo é um problema eterno na Itália devido à falta de espaço nos aterros, o que acaba causando crises periódicas em cidades como Roma e Nápoles, mas a área usada pela Camorra, que vai do Mar Tirreno ao sopé dos Apeninos, é o exemplo mais bem acabado de destruição da natureza.
Há lixo espalhado no acostamento das estradas, acumulado sob as passarelas e jogado nos canais de irrigação. Ratos procuram comida em meio a placas usadas de amianto, monitores quebrados e latas de tinta vazias. Volta e meia é possível ver colunas de fumaça escura, prova incontestável dos dejetos que são queimados nas colinas e campos abandonados.
A paisagem é resultado de décadas de negociatas entre fabricantes da Itália e outros países - cujo objetivo é evitar os altos custos do descarte adequado dos dejetos contaminados - e a Camorra, uma das três principais organizações da máfia, viu o potencial de lucrar enormemente com a possibilidade de enterrá-lo ilegalmente.
Ao fazê-lo em seu próprio quintal, perto de Nápoles e da região de Campânia, onde a facção nasceu, garantiu não só uma medida de proteção como o silêncio da população. Afinal, é sabido que os chefões exercem uma influência poderosa sobre a economia e os políticos locais, principalmente em cidadezinhas como Casal di Principe.
- A máfia ganha dinheiro com o lixo. Os políticos deveriam se preocupar, mas não estão nem aí. Ninguém acompanha nem se importa como trajeto que o lixo faz - diz Ciro Tufano, contador de 44 anos que há vinte tenta forçar as autoridades a limpar um aterro tóxico perto de sua casa.
De fato, parece que o público acordou há alguns meses, depois de uma série de escândalos e protestos que levaram milhares de pessoas para as ruas de Nápoles em novembro.
Algumas revelações vieram do depoimento de 1997, de Carmine Schiavone, ex-tesoureiro do clã Casalesi, uma das facções mais poderosas da Camorra. Em segredo a um comitê parlamentar investigativo, ele descreveu as operações noturnas em que gângsteres disfarçados de policiais supervisionavam o enterro de lixo tóxico que vinha até da Alemanha.
- Estamos falando de milhões de toneladas - alertou ele em sua declaração.
Depois, a revista l'Espresso publicou uma matéria de capa intitulada "Beba em Nápoles e Morra". O artigo deu detalhes sobre uma pesquisa de saúde pública feita em 2008 pela Marinha dos EUA, que tem uma base em Nápoles. O estudo, que não foi publicado na Itália, dizia que a água tinha sérios problemas de contaminação, descreveu "riscos inadmissíveis" e recomendava que todos os norte-americanos da região usassem água engarrafada para beber, preparar os alimentos e até escovar os dentes.
Em dezembro, o primeiro-ministro Enrico Letta aprovou um decreto que aumentava o tempo de prisão pelo despejo ilegal e/ou incineração de lixo. Em janeiro, o governo anunciou que um contingente de soldados iria patrulhar a região em tempo integral.
- Essa é a nossa resposta a uma situação emergencial. Os políticos agora têm que fazer alguma coisa porque o povo está indo para a rua para protestar - explicou o General Sergio Costa, comandante da Polícia Ambiental italiana para a região de Nápoles.
O objetivo da operação com a escavadeira era provar que a nova resolução do governo era séria. O local escolhido foi o perímetro da zona conhecida como "Triângulo da Morte", mas em uma cidadezinha que praticamente pertencia ao clã Casalesi. Os jornalistas foram convidados em meio à expectativa de que a escavadeira desenterraria latões e mais latões de lixo. Em 2008, a caçamba de um caminhão que levava produtos químicos tinha sido encontrada em um campo a alguns quilômetros dali.
Porém, depois de várias horas o que saiu foi uma montanha de terra e muito ceticismo. As autoridades mais tarde disseram que as escavações continuariam por mais algumas semanas e que grandes quantidades de amianto e lama contaminada já tinham sido recolhidas. O dono do terreno, Stanislao Di Bello, um advogado que comprou o lote como investimento, em 1990, observava a escavação por trás dos óculos escuros, inabalável. E disse que uma escavação já tinha sido realizada no início dos anos 90 e nada tinha sido encontrado.
- Dezesseis anos depois, o filme se repete - murmurou ele.
A grande questão é se o material tóxico pode causar uma crise na saúde pública. Mais de 500 mil pessoas vivem na região onde, segundo o estudo da Lancet e outros registros, há um nível de casos comprovados de câncer acima da média nacional. Embora não haja provas documentadas de uma ligação direta, um relatório a Organização Mundial de Saúde conduzido com instituições de saúde regionais e nacionais mostrou que há mais casos de câncer de fígado, rim e pâncreas em áreas conhecidas por serem lixões.
Na cidadezinha de Marigliano, o reverendo Giannino Pasquale é testemunha da rapidez com que a doença se espalhou entre seus paroquianos. Ele abriu o livro que serve como obituário e contou: em 2013, 27 mortes, dez por câncer.
- Eu acho que existe um acordo entre os partidos políticos e a Camorra. É só olhar à nossa volta. Pilhas de pneus e amianto são jogadas em qualquer beira de estrada. Por que é tão difícil controlar essa área?
Um bom exemplo é Luigi Sodano, de 57 anos, que já perdeu mais de 27 kg em sua batalha contra um câncer no pâncreas; a mãe tem câncer na bexiga, o sobrinho, na próstata e a mulher dele, no seio. A radioterapia o deixa tão letárgico que ele mal sai do apartamento.
- Sou seu anjo da guarda, estou sempre ao seu lado - diz a mulher, Angela Dioguardi.
Costa, o comandante da Polícia Ambiental, disse que a Camorra parou de enterrar o lixo ilegalmente há alguns anos, mas que agora o enviava de navio para a Europa Oriental ou os Bálcãs. O tamanho da área em que o lixo está enterrado é relativamente pequeno, mas os riscos são significativamente maiores porque os pontos de desova estão espalhados.
- Atinge todos os lugares. Você pode ser um agricultor que, sem querer, acaba irrigando a plantação com água contaminada.
Os produtores locais reclamam que os preços estão caindo porque os atacadistas têm medo de comprar qualquer coisa plantada ali. E não é só da terra, a preocupação é também com a famosa mussarela da região, embora Costa diga que a produção é controladíssima e nenhum caso de contaminação foi registrado.
E relembra o início da crise do lixo, quando ouviu uma conversa grampeada entre um dois integrantes da Camorra.
- Estamos poluindo nossa própria terra. O que vamos beber daqui para diante? - questionou um mafioso.
- Seu idiota, é só beber água mineral - respondeu o chefão.