Se chuva em funeral é uma bênção, como acreditam algumas culturas tradicionais africanas, a despedida apoteótica a Nelson Mandela inspirou boa parte dos líderes mundiais.
O funeral dos funerais, a primeira de uma sequência de cerimônias que durarão até domingo, foi uma maratona de pelo menos três horas de um protocolo que uniu os diferentes - fazendo jus à premissa do presidente que lutou por uma África do Sul multirracial e tolerante.
O memorial com pelo menos 91 chefes de Estado e de governo presentes ou representados colocou sob um púlpito com cadeiras enfileiradas em meio ao gramado do gigante estádio Soccer City, em Joanesburgo, diferentes como Barack Obama e Raúl Castro. Reuniu africanos, como o ditador do Zimbábue, Robert Mugabe, europeus como o ex-primeiro-ministro britânico, Tony Blair, comitivas da Ásia e do Oriente Médio. O Brasil enviou representantes de peso - a presidente Dilma Rousseff e todos os ex-presidentes vivos: Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso, Fernando Collor de Mello e José Sarney.
A simbiose inspirou até um aperto de mão histórico entre Obama e Castro, cujo período em que o país está separado antecede até mesmo o período em que Mandela foi enviado para os seus 27 anos de cárcere.
- A África do Sul sabe que é possível mudar, que se pode escolher um mundo de paz e justiça - discursou o americano, de longe o mais aplaudido, enquanto o anfitrião, o presidente Jacob Zuma, mal podia aparecer no telão que logo era vaiado.
Terminada a cerimônia, os convidados vip deixaram os camarotes de autoridades e se juntaram em um saguão que conduzia à saída. Alguns se demoraram para ir embora, como Ban Ki-moon, que ouvia atentamente a um representante de uma nação africana e balançava a cabeça afirmativamente. O novo rei da Holanda, Willem-Alexander, conversava poucos metros adiante, sempre com a postura um pouco distanciada de rei. Pouco antes, Barack e Michelle Obama passaram correndo apressados. O mesmo fez o primeiro-ministro britânico, David Cameron. O cenário era de sintonia e até a segurança parecia mais relaxada.
Raúl Castro circulou por ali, onde Bill Clinton também passara, só sorrisos. E François Hollande caminhava apressado ao lado de seu sucessor, Nicolas Sarkozy.
- Foi um dia maravilhoso para toda a nação da África do Sul. Foi triste, mais foi cheia de esperança e gratidão. Ele era um grande homem - disse a Zero Hora o último presidente do apartheid, Frederic de Klerk.
Ele caminhava um pouco à frente da família e amigos mais próximos de Mandela, que deixavam o púlpito. Winnie Mandela, a ex-mulher, olhava para o chão, emocionada. Era seguida por Graça Machel, visivelmente emocionada e cansada. Graça foi a última mulher do primeiro presidente negro da África Sul. Estava acompanhada pelo arcebispo Desmond Tutu, prêmio Nobel pela sua atuação pela reconciliação do país.
- Em vez de ser consumido em ódio e vingança, Mandela mostrou que é um esteio da paz, da reconciliação, da magnanimidade e do perdão. Justiça e bondade triunfaram - disse, encerrando quase quatro horas de cerimônia.
Do lado de fora, houve quem varasse a noite para conseguir um bom lugar para a despedida de Madiba, como Hezekiel Aphane, 32 anos, zulu, mestre em engenharia mecânica, e que ontem era um dos tantos enrolados em bandeiras com o rosto de Mandela e que dançava pelos corredores.
- Ô, Mandela, você fortaleceu e libertou as pessoas do mundo. Mandela, onde você estiver, o país está melhor - cantava e recitava, acompanhado por estranhos, também animados.
Pequenas multidões que cantavam gritos de guerra entravam vez ou outra nas arquibancadas, davam a volta pelos corredores e retornavam.
- Mandela vive para sempre - disse Marcus Ramakgade, militante ferrenho do CNA, que celebrava a vida de Mandela, mesmo ensopado, sem guarda-chuva.
A chuva, mesclada com o cerimonial demorado - mais de três horas - acabou afastando o público, que não lotou o estádio com capacidade para 80 mil pessoas, mas não tirou o brilho de uma nação - e de um mundo - que parece pelo menos ouvir as palavras do último grande herói global que se foi.
A partir de amanhã, o corpo de Mandela será velado no Union Buildings, palácio do governo, em Pretória, a capital política do país, com cortejo fúnebre pela cidade. Por fim, no domingo, Mandela deverá descansar em paz em Qunu, vilarejo na província de Eastern Cape, a quase mil quilômetros de Joanesburgo, onde familiares de Mandela estão sepultados.