Desde sua ascensão ao poder e durante os mandatos como primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel levou sua vida pessoal com extrema privacidade - um feito difícil de imaginar na era das mídias sociais. Mas, a cada quatro anos, o ciclo das eleições deixa entrever uma fresta da porta fechada pela primeira-ministra. Por um curto e calculado período de tempo, Angela, vista tantas vezes em reuniões com líderes europeus sobre a situação econômica no continente, é encontrada brindando pequenos grupos com história de sua juventude. A primeira-ministra conta sobre a caça por mantimentos nas prateleiras vazias das lojas da Alemanha Oriental, onde cresceu, e sobre as noites misturando suco de cereja com vodca como bartender em festas da universidade. É o que diz Das Erste Leben der Angela M. (A Primeira Vida de Angela M.), biografia lançada em maio (a quatro meses das eleições), sem tradução para o português.
O que o livro revela - e Angela silencia - é que, antes de ser a mulher mais poderosa do mundo, ela foi entusiasta do comunismo na Alemanha Oriental. Baseados em depoimentos de colegas e pares da primeira-ministra, os jornalistas Günther Lachmann e Ralf Georg Reuth relatam o papel de Angela na Juventude Alemã Livre. Os autores citam o ex-ministro dos Transportes Günther Krause, que contradiz a líder, dizendo que o cargo dela na organização não era de secretária cultural, e sim de secretária de Agitação e de Propaganda, "responsável pela lavagem cerebral" partidária.
A preocupação com as raízes políticas de Angela reflete a incansável fascinação do público por uma mulher que chegou ao comando da maior economia da Europa e se tornou uma das figuras públicas mais queridas da nação - com 65% de aprovação - mantendo uma imagem de profunda integridade pessoal, com uma vida privada guardada a sete chaves.
- Angela Merkel é uma espécie de mãe da Alemanha, um anti-Hitler na imaginação dos alemães. Hitler era o pai tirano. Angela é conservadora e séria, como uma mãe - diz o historiador Voltaire Schilling.
A controvérsia levantada pelo livro revela, no entanto, não que os alemães saibam pouco sobre a primeira-ministra, oito anos após sua eleição, mas que entendem muito pouco sobre a antiga Alemanha Oriental, 24 anos após a queda do Muro de Berlim - é o que comprova a excessiva importância dada ao comunismo no livro. Para Schilling, o comunismo não deveria ser estranho para o povo alemão:
- De 1870 a 1933, o comunismo foi algo presente na Alemanha, primeiro na forma social-democrata, e, depois, na forma do Partido Comunista.
A reação de Angela à "nova luz" lançada sobre seu passado foi discreta. Em uma sessão de cinema no último mês, quando questionada sobre o assunto, ela respondeu com modéstia, afirmando que podia confiar apenas em sua memória:
- Se algo diferente for revelado, posso viver com isso. O que importa para mim é que nunca tentei esconder nada - disse, que adicionou, tímida:
- Talvez, se falhei em explicar alguma coisa, é porque ninguém me perguntou.
Aluna aplicada e defensora da divisão alemã
Durante a infância, Angela Merkel era uma estudante devotada do idioma russo. "Ela adorava o idioma russo, porque era 'cheio de sentimento'. E ela aprendeu com entusiasmo", escrevem os autores Lachmann e Reuth. Os jornalistas descrevem a vitória de Angela na Olimpíada de Russo da Alemanha Oriental e sua viagem a Moscou para a edição internacional. A sugestão clara é de que a obstinação da primeira-ministra em aprender o idioma era suspeita.
- O russo era o idioma obrigatório da Alemanha do Leste na época - pondera Voltaire Schilling - Dizer que uma pessoa é ardorosa nos estudos pode indicar simplesmente que é estudiosa, e não comunista.
Sobre o posto de secretária de Agitação e Propaganda na Juventude Alemã Livre que o livro afirma que ela ocupou, Angela afirmou na biografia Mein Weg (Meu caminho): "Agitação e Propaganda? Não lembro de ter agitado coisa alguma. Era a secretária de Cultura". Para os autores da nova biografia, o que importa não é o cargo, mas o fato de que ela "tem escondido coisas", justificam no livro.
No outono de 1989, pouco antes da queda do Muro de Berlim, Angela juntou-se ao recém-fundado Demokratischer Aufbruch, o Despertar Democrático (DA). Contrariando a versão oficial, os autores afirmam que ela não entrou no partido em dezembro, quando o grupo incluiu a unificação da Alemanha em sua plataforma como uma visão do futuro, mas antes, quando a reunificação ainda não estava nos planos. Ainda para os autores, muitos fatores sugerem que Angela Merkel originalmente advogava pelo socialismo democrático em uma Alemanha separada, e nem sempre quis a unificação.
Tudo indica que, apesar das novas perspectivas sobre a trajetória de Angela, as revelações não remetem a uma reavaliação do papel da primeira-ministra no país - nem indicam que sua popularidade nas eleições de setembro esteja ameaçada.
A versão oficial
O que Angela diz sobre sua trajetória
- Nasceu Angela Kasner, em Hamburgo, em 1954.
- O pai, pastor protestante, levou a família para a Alemanha Oriental.
- Próximo do Partido Socialista Unitário, o pai incentivou sua participação na Juventude Alemã Livre
- Na universidade, trabalhou como secretária da Juventude, organizando leituras e idas ao teatro.
- Tornou-se porta-voz do partido Despertar Democrático após as eleições de 1990.
- Assumiu como ministra da Mulher e da Juventude no terceiro mandato de Helmut Kohl.
- Assumiu o governo alemão em 2005. Busca o terceiro mandato nas eleições parlamentares que irão ocorrer em 22 de setembro.
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